domingo, 8 de março de 2015

Arte e Acaso, do causal ao casual. Uma introdução a problemática da produção e casualidade.




Autor: Nailton Fernandes da Silva
Contato: arcanjo-nay@hotmail.com



“A arte ama o acaso, e o acaso ama a arte.” (Agatão, tragediógrafo grego)


           A início é importante salientar que a arte enquanto saber produtivo, “não se ocupa com aquilo que se gera por necessidade” (E.N. 1140a15), como é o caso do saber cientifico que estuda causas universais e necessárias, isto é, o que se sucede na natureza (physis) é gerado intrinsecamente à coisa, como diz Aristóteles, por exemplo: “o homem gera o homem” (MET. 1070a5), expressando assim, necessidade, não podendo ser diferente, caso contrário, ter-se-ia um acidente, que naturalmente é explicado como uma exceção ou “anomalia” da substancia da coisa na natureza, assim explica-se por exemplo, os casos de má formação genética na Grécia antiga. 
         
         Deixando um pouco de lado a problemática dos acidentes naturais, por ser deveras embaraçoso e foge nossa temática, é mister perceber que a natureza não é eterna no sentido forte da palavra, assim como “os princípios últimos” (MET. 1069b35-36), isto é, a matéria e a forma “não se geram”, se quiséssemos expressar essa diferença metafísica entre não geração e eternidade, em linguagem moderna, diríamos que a matéria e a forma se perpetuam na physis. 

       Essa “não geração” afirmada pelo Filósofo dá-lhe o caráter ingênito ou inato que compete a forma e a matéria enquanto um todo (sinolo), pois, o aglomerado de matéria e forma estão naturalmente em devir, e “tudo o que muda é algo, muda por obra de algo e muda em algo.” (MET. 1069b36-37) A mudança natural, segundo o estagirita, é explicada pela existência do “motor próximo”, que é causa de movimento do movido (MET. 1070a), no caso, a causa última de movimento da physis é o primeiro motor imóvel, lembrando que, esse motor difere-se abismalmente de Deus, essa palavra carregada de qualidades metafísica, como a de criação e benevolência. 

     Em contrapartida, na obra de arte a sua forma ou essência é imaterial, pois, a arte é a própria forma concebida pelo artífice ainda na ausência de matéria, por exemplo, a forma da casa concreta é a arte de construir que lhe é inerente enquanto “casa”, mas é imaterial enquanto forma extrínseca, isto é, produto do artífice que a produz. 

         Assim, a arte (tekné) é uma capacidade de gerar a “forma”, que segundo Aristóteles, envolve um “reto raciocínio e uma capacidade de produzir” (E.N. 1140a10), a saber, proveniente da parte calculativa da alma humana. Entretanto, a arte enquanto produção (poiésis) deve necessariamente está ligada ao conhecimento de causas universais, a rigor, intimamente ligado ao “logos verdadeiro” ou reto raciocínio, que por sua vez possibilita um acerto nas coisas que se sucedem diferentemente, isto é, contingentes.

         Sendo a arte à forma, o artista utiliza a matéria amorfa, e usa a técnica para dá a forma que, segundo Aristóteles, “está presente no pensamento do artífice” (MET. 1032a32), para então produzir a obra, que tornar-se um aglomerado de matéria e forma concretizada. 

       Por isso, o estagirita afirma em sua Metafísica, acerca da geração da forma das coisas, como sendo a “arte principio de geração extrínseco à coisa gerada; ” (MET. 1070a5) Que ilustramos com um exemplo neste caso, perceberíamos que a causa eficiente ou motora de se produzir o retrato na pedra foi Policleto, que utilizou-se do reto raciocínio ou logos verdadeiro para tal produção, logo, o principio de geração é extrínseco, pois a pedra amorfa nunca produziria “naturalmente” um retrato em si, com tal perícia como o retratista em pedra faria, não havendo assim a famosa “necessidade intrínseca” de se gerar uma estátua na natureza. 

         Insistindo no fato de encontrarmos uma estátua na natureza, ou algo que “pareça” ser produto de uma produção artística, a explicação desta casualidade, seria novamente um acidente, pois não é necessário ou natural na physis a “produção” de estatuas, essa tarefa racional e produtiva destinou-se para um artífice ou artista. Ademais, ainda se referindo à geração das coisas, diz Aristóteles que, a geração faz-se também casualmente (tyché), isto é, quando ocorre a “privação” da arte. (Idem) 

        A casualidade ocorre quando por acidente o excepcional se sucede, ou como Enrico Berti aborda, se sucede um “desvio ou ausência” (BERTI, Enrico. 1998. p. 158), neste caso estritamente a atividade humana.

           A arte (tekné) e o acaso (tyché) diferem-se, sobretudo, pela racionalidade, pois é a privação do logos que faz gerar as coisas “fortuitamente”, em contrapartida não confundindo com “carência de arte”, que segundo o estagirita, é a disposição produtiva acompanhada da falsa racionalidade (E.N. 1140a22). 

           Tendo em vista que os acidentes, ou o que se sucede por acaso (tyché), segundo o filósofo, é de natureza indeterminada, ocorrendo posteriores as causas que são “por si” determinadas (Ver, FÍSICA. 198a7-10), é perceptível que não se possa fazer ciência aristotélica do que é casual, pois suas causas não podem ser aprendidas. Vejamos o exemplo do que sucede casualmente (tyché) à partir da ausência da racionalidade (logos) artística: Policleto o retratista em pedra, não pôde calcular o que se sucedeu com sua escultura após ter exposto em uma praça pública (causa final), incalculáveis coisas lhe poderia suceder, sobrepujando as causas “particulares” à sua produção. Alguém não se agradando da escultura deceparia a cabeça, alterando assim a forma; Ou, ao passar do “tempo” a estátua mesmo sem cabeça e com a “cor alterada”, torna-se um ponto de referência para muitos e mais bela respectivamente. A contingência inerente ao que se sucede casualmente é explicada pelo fato de que, para Aristóteles, o acidental esta mais “próximo ao não-ser” (MET. VI 2, 1026b20), ademais, a arte enquanto conhecimento universal dotado de logos, que por experiência aplica-se ao contingente (MET. I 1, 981a15), se opõe ao casual por ser necessariamente uma espécie de “saber e entender”, logo, conhece os porquês ou causas, ou seja, a arte, para Aristóteles, também é uma espécie de ciência, a saber, produtiva.

           Aristóteles deixa pouco esclarecido em sua Ética a Nicômaco que, “em certo sentido, o acaso e a arte versam sobre as mesmas coisas” (E.N. 1140a15), embora nos deixe explicito em sua filosofia primeira (Metafísica) a referência de que tanto a arte (tekné) e o acaso (tyché), participam de certa maneira da geração, assim, a primeira dá forma de acordo com o raciocínio do artista, e a segunda de acordo com a “privação” da racionalidade que é própria da arte, no sentido de que o artista não pode calcular o que ocorrerá após a finalidade de sua produção, e sobretudo, por ambas ocuparem-se das coisas que podem ser diferentemente ou contingentes.

        O fato de a escultura ter se tornado ponto de referência e de contemplação para alguns, são contingências que poderiam tanto ser como não ser, e que sobrepujará a racionalidade do artista, portanto, tal fato ocorreu senão por sorte, pois a estatua situa-se no devir do mundo como todas as outras coisas. A extensão do exemplo foi propositalmente feita para atentarmos para o fato de que Aristóteles ao citar Agatão (Tragediógrafo grego) que diz que: “O acaso ama a arte, e a arte ama o acaso” (E.N.VI 4, 1140a20), é a fim de evidenciar a harmonia que há, mesmo quando a privação da racionalidade artística acontece, gerando algo indeterminadamente, pois a obra de arte além da finalidade de quem produz, não há um fim absoluto e irrestrito como ocorre nas ações práticas, isto é, não pode o artista intervir racionalmente de “maneira absoluta” sobre a arte, tendo em vista que estritamente sua causa final foi expor em praça pública, logo, as demais causas (para o artífice) que se sucedeu sobre a arte serão acidentais, nos cabendo insistir que, embora a racionalidade do artífice tenha sido extrapolada após o findar de sua finalidade, se sucedendo acidentes, nada é explicado por via de acidentes, o que há, mesmo que de maneira subjacente, é a não racionalização absoluta do objeto artístico. 

        Assim, a obra posteriormente, sofre a ação (paixão) do devir ou de alguém que tem outras e outras finalidades sobre a arte, constata-se assim que, toda produção é produção sobre um solo em devir, ou no mundo sublunar que está disposto a contrários e ao acaso. 

       Enfim, o que surge de maneira indeterminada, por acaso, se opõe ao que naturalmente ou produtivamente está disposta a ser, não podendo inferir, portanto, que a obra de arte (sínolo) surgiu por acaso, pois o que ocorre “por acidente” sempre é posterior ao que é “por si” causal, caso contrário a cosmologia aristotélica da causalidade não faria sentido.

REFERÊNCIAS 

ARISTÓTELES. Metafísica. Org. Giovanni Reale. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2013.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Coleção Os Pensadores.) 

ARISTÓTELES. Física. Traducción y notas: Guillermo R. de Echandía. Editorial Gredos, S.A. 1995.

BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Coleção: Leituras Filosóficas. Ed. 2. São Paulo: Loyola, 1998.

*As ideias e informações publicadas neste artigo são de total responsabilidade do seu autor.

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