domingo, 8 de março de 2015

Perspectiva em primeira pessoa e identidade narrativa: para uma abordagem prática-linguística da identidade pessoal





Autora: Profª Ms. Cristina Amaro Viana Meireles
Professora Assistente no curso de Filosofia da Universidade Federal de Alagoas. 
Doutoranda em História da Filosofia Contemporânea na Universidade Estadual de Campinas.
Contato: viana.cris@ig.com.br



Resumo
Visando buscar uma resposta para o clássico problema da manutenção da identidade pessoal ao longo do tempo e através das mudanças, uma estratégia que tem se mostrado promissora é a de situar a problemática numa abordagem mais prática, que priorize as dimensões do corpo, da ação e da linguagem, em detrimento das análises mais centradas em aspectos meramente cognitivos ou psicológicos. É no contexto dessa abordagem prática que proporemos uma leitura da tese apresentada pela filósofa da mente Lynne R. Baker (1944-) em Persons and Bodies (CUP, 2000), segundo a qual a identidade pessoal ao longo do tempo pode ser pensada como a manutenção de uma mesma perspectiva em primeira pessoa. Considerando que a perspectiva em primeira pessoa, segundo a autora, consiste na habilidade linguística de referir-se a si mesmo em primeira pessoa, arriscaremos uma aproximação incomum à tese do filósofo francês contemporâneo Paul Ricoeur (1913-2005), apresentada em Soi-même comme un autre (Seuil, 1990), segundo a qual a identidade pessoal ao longo do tempo só pode ser uma identidade narrativa. Esta aproximação tem como objetivo contribuir para as investigações contemporâneas sobre o problema da identidade pessoal congregando elementos da filosofia da mente e da assim chamada filosofia continental, por meio da defesa do seguinte conjunto de hipóteses: (1) a identidade pessoal tem de ser concebida como uma criação; (2) o aspecto linguístico dessa criação tem de ser enfatizado; (3) uma dimensão da linguagem que parece muito promissora para o problema em questão é a da composição de uma narrativa.

Palavras-chave
Perspectiva em primeira pessoa; Identidade narrativa; Ipseidade; Mesmidade

Abstract
Aiming at to search an answer for the classical problem of personal identity’s maintenance along time and through changes, a strategy that has been shown promising is to set the discussion in an more practical approach, which prioritizes aspects like the body, the action and the language, rather than other analysis focused on merely cognitive and psychocological aspects. It is in the context of this practical approach that we propose a reading of the thesis presented by the Philosopher of Mind Lynne R. Baker (1944- ) in Persons and Bodies (CUP, 2000), according to which personal identity along time can be thought as the maintenance of a same first person perspective. Considering that first person perspective, according to the author, consists of the linguistic ability of referring to oneself in first person, we will try an uncommon approach to the thesis of the Contemporary French Philosopher Paul Ricoeur (1913-2005), presented in Soi-même comme un autre (Seuil, 1990), according to which personal identity along time can only be a narrative identity. That approach aims for contributing to the contemporary research about the personal identity problem by congregating elements of the Philosophy of Mind and the so-called Continental Philosophy, by means of the defence of the following set of hypothesis: (1) personal identity has to be thought as a creation; (2) the linguistic aspect of this creation has to be emphasized; (3) an aspect of language that seems very promising for the issue in question is that of the composition of a narrative.

Key-words
First person perspective, Narrative identity; Selfhood; Sameness

1. Introdução

            Este artigo foi animado pela perplexidade diante do clássico problema filosófico de saber como é possível que uma pessoa se mantenha a mesma ao longo do tempo. Não está em nosso horizonte, contudo, enveredar por uma busca de um elemento pretensamente central para explicar a unidade da pessoa. Antes, nos inspiraremos numa das lições que o contato com a Professora Maria Eunice Quilici Gonzalez – para quem este artigo foi redigido como uma singela homenagem por ocasião de seu aniversário – nos permitiu compreender. Sendo assim, partiremos do pressuposto de que a constituição da unidade que caracteriza a identidade pessoal é um processo de criação dinâmica, processo que é levado a cabo pelo indivíduo pelo tempo que durar sua existência. Numa palavra, a identidade pessoal será entendida aqui como uma instância que nunca se completa, muito embora ela apareça sempre como definitiva para um indivíduo em situação.
            Assim sendo, importa para nós buscar lançar luz sobre o processo mesmo de constituição subjetiva da identidade pessoal. É por conta desse interesse que mobilizaremos esforços a fim de que dois autores entrem em diálogo: Lynne R. Baker (1944-) e Paul Ricoeur (1913-2005). A despeito de diferenças importantes no que diz respeito às tradições das quais cada um é herdeiro, às filosofias com as quais cada um debate, bem como no que concerne às questões centrais para um e outro autor, ambos trouxeram importantes contribuições para melhor se compreender o processo dinâmico de criação da identidade pessoal. Acreditamos poder dizer inclusive que estas contribuições confluem para uma mesma direção – e esta é a razão para a arriscada empreitada de trabalhá-los conjuntamente – qual seja, a de que a constituição da identidade pessoal é um processo eminentemente prático e linguístico que se estende por toda a vida de um indivíduo.
            Dois conceitos centrais serão aqui destacados para refletirmos sobre a constituição da identidade pessoal: perspectiva em primeira pessoa, da filósofa norte-americana Lynne R. Baker; e identidade narrativa, do filósofo francês Paul Ricoeur. Baker apresenta e desenvolve a noção de perspectiva em primeira pessoa em sua obra Persons and Bodies: A constitution view (CUP, 2000). Nem uma mônada, nem uma substância, nem um conceito: a identidade pessoal é uma mera perspectiva. Perspectiva de um eu já dado anteriormente? De modo algum: a perspectiva, mantendo-se a mesma, é que possibilitará a criação do próprio conceito de eu. A perspectiva, muito antes de identificar uma pretensa unidade, é a instanciadora dessa unidade. Ora, mas que tipo de unidade pode estar relacionado à manutenção de uma mesma perspectiva ao longo do tempo? Defenderemos aqui a ideia de que essa unidade deverá ter necessariamente um caráter linguístico-hermenêutico. Para o primeiro termo dessa expressão – “linguístico” –, encontramos apoio no próprio texto de Baker, que em diversos momentos enfatiza que é por meio de uma habilidade linguística que um indivíduo consegue atribuir a referência em primeira pessoa (não só a si mesmo, mas também aos outros). Agora, no que diz respeito ao segundo termo da expressão acima – “hermenêutico” –, ultrapassamos o texto de Baker e passamos a nos apoiar nas reflexões de Paul Ricoeur, num esforço por buscar uma especificação para a habilidade linguística de que fala Baker.
            Para Ricoeur, a linguagem é uma dimensão central do homem, que deve ser considerada na análise de qualquer fenômeno humano que se empreenda. Contudo, a linguagem para Ricoeur está longe de poder ser reduzida à mera manipulação de símbolos no interior de estruturas determinadas. Quanto a isto, é esclarecedor mencionar que ele argumentou fortemente contra a posição de filósofos estruturalistas mais tradicionais, como Saussure e Lévi-Strauss, se declarando mais próximo de perspectivas teóricas que pensam a linguagem como discurso, tais como Benveniste e Greimas[1]. Para Ricoeur, a linguagem é, ela mesma, um acontecimento[2], o que significa dizer que ela possui uma veemência ontológica intransponível. A linguagem é essencialmente criativa na visão de Ricoeur, na medida em que nela se dá a inovação semântica[3].
            Isto posto, é no contexto de uma concepção de linguagem enquanto discurso, criação e acontecimento que buscaremos apresentar um possível – e, em nossa visão, instigante – desenvolvimento do conceito de perspectiva em primeira pessoa de Baker. Assim sendo, é a partir do conceito ricoeuriano de identidade narrativa – apresentado inicialmente no terceiro tomo de sua obra Temps et Récit (Seuil, 1985), mas plenamente desenvolvido alguns anos mais tarde, em Soi-même comme un autre (Seuil, 1990) – que buscaremos elementos para ampliar a compreensão da dimensão linguística necessariamente presente em toda perspectiva em primeira pessoa. O primeiro passo para ampliar a compreensão da dimensão linguística da perspectiva em primeira pessoa será, a nosso ver, a sua delimitação – e aqui se encontra o cerne de nossa arriscada hipótese: a dimensão linguística de que se trata deverá ser restringida à habilidade narrativa. A hipótese que levantamos aqui é a de que somente a partir da construção de uma unidade narrativa de vida seria possível manter uma mesma perspectiva em primeira pessoa ao longo do tempo, perspectiva esta que ensejaria uma identidade pessoal.
            Dividiremos este breve artigo em três partes: na primeira, exporemos a tese da perspectiva em primeira pessoa de Baker, realçando a ressonância da dimensão prática e linguística que a constitui. Na segunda parte, apresentaremos a tese da identidade narrativa de Ricoeur, colocando em evidência alguns elementos centrais para um definitivo deslocamento do problema da identidade pessoal rumo ao contexto da ação. Por fim, na terceira parte, desenvolveremos uma leitura da noção de perspectiva em primeira pessoa de Baker à luz das reflexões ricoeurianas sobre a identidade narrativa, apresentando a ideia de que a perspectiva em primeira pessoa só pode explicar a constituição da identidade pessoal caso ela esteja ligada a uma unidade narrativa de vida.

2. A identidade pessoal, segundo Lynne R. Baker

O clássico problema da permanência de uma pessoa como a mesma ao longo do tempo e apesar das mudanças não é o objetivo central do livro de Baker no qual estamos nos apoiando. Antes, este livro tem como meta a apresentação de uma certa teoria, a tese da constituição[4], uma teoria materialista que visa explicar de um modo não reducionista a relação entre as pessoas humanas[5] e seus corpos constituintes. No entanto, buscaremos mostrar que, ainda assim, a ressonância desta tese para o problema da identidade pessoal é de grande relevância, ainda que, no livro, as reflexões da autora sobre a identidade pessoal ocupem apenas um capítulo dentre os seis da segunda parte (Cf. BAKER, p. 118-146).
Segundo a tese da constituição, nós não somos corpos, nem somos pessoas que possuem corpos, mas sim nós somos constituídos por nossos corpos humanos. Esta relação de constituição é submetida ao escrutínio da autora ao longo das mais de duzentas páginas a partir de vários vieses e em diálogo com vários autores, numa intensidade e vigor que seriam impossíveis de reproduzir aqui. A teoria materialista proposta por Baker, ao contrário de tantas outras do mesmo gênero, nos parece particularmente interessante por garantir a legitimidade de uma noção de pessoa que inclui a assim chamada vida interior. Segundo a tese da constituição, embora não possamos falar de pessoa sem falar de um corpo material, igualmente não podemos conceber pessoa sem pressupor a existência de uma vida interior.
Ora, como pode uma teoria materialista permitir que se fale em vida interior, uma expressão muitas vezes rechaçada com base em sua alegada dimensão metafísica? Antes de tudo, Baker faz questão de sublinhar que sua teoria não é, de modo algum, cartesiana:

Esta perspectiva não é cartesiana: uma vida interior não requer uma alma imaterial, nem é ela independente do mundo que nos cerca. Nossas vidas interiores – embora ontologicamente peculiares – não são conceitualmente, temporalmente ou ontologicamente prioritárias em relação ao restante do mundo material. (BAKER, p. 59, tradução nossa).

Mais adiante, Baker complementa que a interioridade que ela alega existir em toda pessoa não envolve nenhum tipo de reificação: “[...] O que é peculiar numa pessoa não precisa ser assegurado por uma entidade logicamente privada à qual ninguém além de mim teria acesso” (BAKER, p. 69). Assim, para Baker, toda pessoa possui vida interior. Na verdade, esta característica é justamente o que define uma pessoa, seja ela humana ou não: “De acordo com a tese da constituição, alguma coisa que tenha uma capacidade para uma vida interior é de um tipo fundamentalmente diferente de qualquer coisa que não tenha nenhuma capacidade para a vida interior” (BAKER, p. 59).
Para desenvolver uma explicação materialista não reducionista do que seria, afinal de contas, uma vida interior, Baker recorrerá à noção de perspectiva em primeira pessoa. Uma perspectiva em primeira pessoa não é meramente uma perspectiva a partir da qual um indivíduo age. Ter uma perspectiva e agir a partir dela é, para a autora, um fenômeno bastante difundido no reino animal. Cachorros e chimpanzés – e, podemos facilmente supor, também golfinhos e elefantes – agem a partir de uma perspectiva, mas nem por isso podemos seguramente dizer que eles possuem uma perspectiva em primeira pessoa. Mesmo dos girassóis talvez pudéssemos dizer que eles exibem uma perspectiva, já que, conforme a definição da autora, eles “[...] simplesmente agem a partir de sua própria perspectiva tendo a si mesmo como o centro” (BAKER, p. 67)[6]. No entanto, nenhum desses exemplos se caracteriza como um caso de perspectiva em primeira pessoa. Eles poderiam, no melhor dos casos, ser considerados fenômenos fracos de primeira pessoa[7]. Para dizer do modo o mais simples possível, a perspectiva em primeira pessoa é caracterizada por Baker como um fenômeno forte de primeira pessoa, isto é, como a capacidade para conceber-se a si como si-mesmo (BAKER, p. 68).
A autora se empenha em tentar esclarecer esta definição um tanto quanto obscura. Antes, porém, de tentarmos acompanhar e reproduzir o essencial de seu meritório esforço, cumpre enfatizar que, em diversas passagens, a autora dá a entender que sua proposta não está comprometida com as exigências epistemológicas de se fornecer critérios últimos e finais para a pessoalidade. Nesse sentido, nos apressamos em caracterizar a proposta de Baker como uma abordagem prática do problema da pessoalidade – tal como do problema da identidade pessoal, ao qual aludiremos mais adiante.

2.1. Elementos da perspectiva em primeira pessoa

A definição de perspectiva em primeira pessoa faz referência, em primeiro lugar, a uma habilidade ou capacidade. Isso tem, a nosso ver, um significado importante: não existe a necessidade de que o estado auto-reflexivo característico da perspectiva em primeira pessoa seja experienciado ininterruptamente. Dito de outro modo, podemos dizer que existe perspectiva em primeira pessoa ainda que, num dado momento, a pessoa não esteja concebendo-se a si como si-mesma. Este ponto será importante na leitura coordenada com a tese de Ricoeur que estamos propondo, como exporemos mais adiante.
Um segundo elemento da perspectiva em primeira pessoa que chama a atenção é o caráter instransponível e irredutível da primeira pessoa. O “conceber-se” de que se trata é uma constatação, digamos, – na falta de uma expressão mais apropriada – a partir de dentro. Dito de outro modo, quando um indivíduo se concebe a si-mesmo a partir de um pensamento que poderia ser expresso na sentença “Eu estou certo de que eu penso”, caso esse indivíduo se chame René, esse pensamento não poderia ter toda sua especificidade abarcada pela sentença “Eu estou certo de que René existe”. Baker realça com grande veemência este caráter ineliminável e irredutível da referência em primeira pessoa:

O pensamento que uma pessoa expressa por ‘Eu*’ não pode ser igualmente bem expresso em um modo que não seja em primeira pessoa. Por exemplo, não há nenhuma maneira em terceira pessoa de expressar o pensamento cartesiano ‘Eu estou certo de que eu* existo’. A certeza que Descartes afirmava era certamente a de que ele* existia, não a certeza de que Descartes existia[8]. (BAKER, p. 77, grifos da autora, trad. nossa).

Assim, o que é mais notável na perspectiva em primeira pessoa é que se trata de uma perspectiva que ninguém mais pode adotar, a não ser a própria pessoa. Voltaremos a este ponto mais adiante, quando apontarmos a relação entre perspectiva em primeira pessoa e identidade pessoal. Por ora, sublinhamos uma peculiaridade advinda desse caráter reflexivo da perspectiva em primeira pessoa, qual seja, a imprecisão que sempre acompanhará os julgamentos sobre a ocorrência ou não de uma perspectiva em primeira pessoa. Este ponto, que comumente seria tratado como uma dificuldade, será para nós a ponte promissora que nos permitirá uma aproximação fecunda com a tese de Ricoeur sobre a identidade narrativa, podendo revelar-se um traço que contribuirá para uma guinada rumo ao tratamento prático da identidade pessoal.
Um terceiro e último elemento que gostaríamos de destacar na perspectiva em primeira pessoa é a sua relação com a linguagem. A questão que tentaremos responder a partir do texto de Baker é: qual o papel da linguagem na operação de conceber-se a si como si-mesmo? Em diversas passagens, a autora deixa subentendido que o central da perspectiva em primeira pessoa não é a forma gramatical na qual ela se expressa. Citamos uma passagem em que isso parece ficar mais claro: “Uma perspectiva em primeira pessoa é manifestada sempre que uma pessoa tem um pensamento, seja ele expresso da maneira como for, que não poderia ser empreendido por nenhuma pessoa que não tivesse a habilidade de pensar em si mesmo como si-mesmo*” (BAKER, p. 68, grifo e trad. nossa). A ideia de que a expressão da perspectiva em primeira pessoa numa sentença não é essencial pode ser comprovada numa passagem em que Baker aventa inclusive a possibilidade de um computador produzir sentenças em primeira pessoa, porém sem jamais ter condições de efetivamente exibir uma tal perspectiva: “[...] um computador pode ser programado para produzir sentenças contendo referência ao eu*, sem definitivamente apresentar tais pensamentos.” (BAKER, p. 65).
Ora, mas se a operação de conceber-se a si como si-mesmo não depende da expressão numa sentença linguística, isso não quer dizer que ela independe do pensamento proposicional. Na verdade, esta é a hipótese interpretativa que, neste ponto, gostaríamos de apresentar: a perspectiva em primeira pessoa só pode ocorrer mediante um pensamento proposicional. Para tentar defender esta hipótese, o nosso primeiro argumento é de que, muito embora Baker não faça esta afirmação categoricamente, em nenhum ponto ela parece se opor a isto. Em alguns momentos, inclusive, poderia nos autorizar a tal suposição. Tomemos como exemplo a passagem em que Baker recorre à figura mitológica de Édipo para exemplificar a ocorrência da perspectiva em primeira pessoa (BAKER, p. 78-80). Nessa passagem, Baker propõe que somente uma perspectiva em primeira pessoa poderia justificar a punição de cegar-se que Édipo infligiu a si mesmo ao descobrir o incesto e o parricídio que sem saber cometera. A análise do suposto pensamento edipiano na ocasião da auto-punição nos dá margem para aventar que tal pensamento só pode se tratar de uma proposição: “A tomada de consciência de Édipo de que ele* era o assassino de Laio requereu que ele tivesse os recursos conceituais para empreender o pensamento exprimível como ‘Embora eu não tivesse percebido antes, agora eu percebo que eu* sou o assassino de Laio’.” (BAKER, p. 78).
Uma segunda linha de reflexão em que nos apoiamos para sustentar que a perspectiva em primeira pessoa só pode ocorrer mediante um pensamento proposicional leva em conta a recusa de Baker em considerar os fenômenos fracos de primeira pessoa como ocorrência deste tipo peculiar de perspectiva. Mesmo as duas experiências com primatas em que o fenômeno de primeira pessoa foi de um grau tão alto[9] que a autora chegou a admitir que se tratam de casos intermediários (isto é, casos limítrofes entre o fenômeno forte e o fraco de primeira pessoa) não a convenceram de que os chimpanzés exibiriam a perspectiva em primeira pessoa. Para a autora, o que ocorre nesses casos intermediários é explicado de outro modo: o auto-reconhecimento dos chimpanzés só se dá mediante intervenção de membros de outras espécies e, além disso, não é possível determinar se se trata de uma habilidade conceitual ou de uma mera habilidade de discriminação (Cf. BAKER, p. 64, nota de rodapé nº 11). Seja como for, gostaríamos de chamar a atenção para uma outra característica que não pôde ser observada no comportamento dos primatas em questão, qual seja, o pensamento proposicional. Assim, pode ser que tais primatas, considerados casos intermediários entre o fenômeno forte e o fraco de primeira pessoa, não exibem perspectiva em primeira pessoa simplesmente porque não concebem proposições.
Por fim, gostaríamos de apresentar uma terceira linha de reflexão para sustentar o caráter proposicional da perspectiva em primeira pessoa, a qual se baseia na recusa da autora em reconhecer que esta perspectiva peculiar se trata de uma mera intuição. Ao invés disso, a perspectiva em primeira pessoa seria uma propriedade relacional (BAKER, p. 72), advinda das relações com outras coisas diferentes daquele que possui a perspectiva em questão: “É somente perante e contra outras coisas no mundo que alguém se posiciona como sujeito com uma perspectiva em primeira pessoa” (BAKER, p. 72). Após uma consistente análise da importância do ambiente na aquisição de conceitos, Baker parte para a consideração da relação íntima que mantemos com nosso próprio corpo e de seu papel central para a perspectiva em primeira pessoa (Cf. BAKER, p. 95). É assim que a autora propõe como aspecto também central na perspectiva em primeira pessoa a condição de se ter uma relação em primeira pessoa com seu próprio corpo:

O corpo que expressa os estados e os traços de caráter da pessoa é o corpo com o qual ela mantém uma relação em primeira pessoa. [...] O corpo com o qual [alguém] mantém uma relação em primeira pessoa é o corpo cujas mãos suadas manifestariam o fato de que [essa pessoa] está nervosa, e cujo estômago embrulhado expressaria o fato de que [essa pessoa] está assustada, ou o corpo que se moveria se [essa pessoa] levasse a cabo sua decisão de sair da sala. (BAKER, p. 94).

Assim, a operação de conceber-se a si como si-mesmo, longe de ser centrada numa intuição, é apresentada por Baker como corolário das inúmeras relações que estabelecemos com o mundo e, em especial, com o nosso próprio corpo. O que estamos tentando sublinhar aqui é justamente o caráter proposicional destas relações. Delimitada a necessidade de um pensamento proposicional para que ocorra a perspectiva em primeira pessoa, mais adiante defenderemos a ideia de que este pensamento precisará ser articulado em um discurso narrativo. Mas, antes, entremos definitivamente na aplicação da noção de perspectiva em primeira pessoa para a questão da manutenção da identidade pessoal.

2.2. A identidade pessoal como manutenção da perspectiva em primeira pessoa

Até agora, nos esforçamos para explicar o que Baker entende como uma perspectiva em primeira pessoa. Agora, o que nos interessa é explicar de que modo a perspectiva em primeira pessoa poderá explicar a manutenção de uma identidade pessoal ao longo do tempo e em meio às mudanças. Neste ponto, não se trata mais de uma perspectiva pontual que, de certo modo, pode ser entendida como instantânea; mas, antes, trata-se de uma perspectiva que se prolonga no tempo, pelo tempo de uma vida. Numa palavra, a questão é saber como é possível que uma perspectiva em primeira pessoa se transforme no que costumeiramente se chama de self, um eu que persiste no tempo e ao qual nos referimos como cerne de nossa pessoalidade.
Em primeiro lugar, é preciso sublinhar que Baker expressamente declara que a perspectiva em primeira pessoa é mais básica que o eu, o self. É plenamente possível, segundo a autora, perder a capacidade de se reconhecer a si mesmo num eu ou self e, no entanto, manter a capacidade para a perspectiva em primeira pessoa. Nas palavras de Baker: “A ideia de um eu é muito mais rica que a ideia de uma perspectiva em primeira pessoa. Um eu é o lugar da integridade e coerência pessoal, mas esse eu não é requerido para a perspectiva em primeira pessoa” (BAKER, p. 88). Isto posto, passemos para uma análise mais detida sobre as contribuições da tese de Baker para o problema da identidade pessoal.
No capítulo intitulado Identidade pessoal ao longo do tempo, Baker sublinha que não pretende resolver o problema da manutenção da identidade pessoal por meio de um critério objetivo a partir do qual fosse possível verificar de modo incontestável a identidade pessoal dos indivíduos. Na verdade, para Baker, não há nenhuma condição que pudesse funcionar como critério nestes termos, pois a questão da identidade pessoal é uma questão complexa demais para ser passível de um tal tratamento (Cf. Baker, p. 146). Assim, a proposta é pensar a manutenção da identidade pessoal como a manutenção da perspectiva em primeira pessoa: “Em primeiro lugar, uma pessoa é definida em termos de uma perspectiva em primeira pessoa. Assim, uma pessoa P1, em t1, é a mesma pessoa que P2 em t2 se e somente se P1 e P2 têm a mesma perspectiva em primeira pessoa.” (BAKER, p. 132, grifos da autora).
Ora, se determinar quando existe uma perspectiva em primeira pessoa já se revelou uma tarefa árdua e controversa, o que diremos agora a respeito da mesmidade dessa perspectiva peculiar? Parece, à primeira vista, que as dificuldades se multiplicarão se seguirmos por este caminho. No entanto, buscaremos defender que a aparente vagueza da ideia de perspectiva é o que nos permitirá, de uma vez por todas, desvincular definitivamente a questão da permanência da identidade pessoal daquelas problemáticas acerca da identidade dos objetos, como a da mesmidade dos barcos, por exemplo (Cf. Baker, p. 146). O que é central na problemática da identidade pessoal é a certeza de ser si mesmo, e é justamente essa certeza que está no centro da ideia de manutenção da perspectiva em primeira pessoa: “Você poderia me convencer a acreditar que estou errada em pensar que eu sou L. B., mas você não poderia me convencer de que eu estou errada em acreditar que eu sou eu ou que eu existo.” (BAKER, p. 141, grifo nosso). A nosso ver, uma característica central dessa certeza – eu sou eu – é seu prolongamento no tempo: ela tacitamente implica a certeza de ter sido si mesmo, bem como a certeza de que se será si mesmo. Essa distensão temporal – para usar uma terminologia agostiniana – é o que caracterizaria a manutenção da perspectiva em primeira pessoa.
Ora, se não se pretende recorrer à postulação de nenhuma substância metafísica, mas também se intentamos evitar uma busca infindável por um critério seguro e último, pergunta-se: o que significa, afinal de contas, manter uma mesma perspectiva em primeira pessoa? Neste ponto, ousaremos não seguir o conselho de Baker, segundo o qual os termos mais básicos da identidade pessoal são a mesmidade da perspectiva em primeira pessoa (Cf. BAKER, p. 138), nos empenhando em buscar uma explicação em termos ainda mais básicos para essa mesmidade. A interpretação que proporemos aqui começa questionando o termo “mesmidade” na expressão “mesmidade da perspectiva em primeira pessoa”. A pergunta inicial é: será que precisamos realmente do peso da exigência de mesmidade? Entendendo que o conceito de mesmidade encerra uma igualdade numérica, nos perguntamos como poderia essa exigência ser aplicada a um conceito tão sutil e fino como o de perspectiva em primeira pessoa. Parece-nos que falar de mesmidade, ainda que seja mesmidade de uma perspectiva, pode nos envolver em uma armadilha linguística, e que por isto seria recomendável uma certa mudança na terminologia. É preciso admitir que, em sentido estrito, uma perspectiva em primeira pessoa jamais poderá ser a mesma, visto que a cada momento as relações que a caracterizam (com o mundo e com o próprio corpo) serão outras. Além disso, entendemos que não é necessário que uma perspectiva em primeira pessoa seja numericamente a mesma; ela apenas precisa ser vivenciada como se fosse. E esta nos parece ser justamente a sutileza mas também a força da ideia de manutenção da perspectiva em primeira pessoa: não se trata da manutenção “do lugar a partir de onde se fala”, mas, antes, de uma recriação permanente deste “lugar”, que a rigor não existiria para além da esfera do sentido a ele atribuído. Em suma, propomos que manter uma perspectiva em primeira pessoa significa retomar linguisticamente as relações constitutivas dessa perspectiva peculiar. Dito de outro modo, manter uma perspectiva em primeira pessoa seria uma operação de recriação linguística do sentido do pensamento do tipo eu sou eu.
Dessa forma, a nossa sugestão para adentrar mais um pouco no significado profundo da expressão “mesmidade da perspectiva em primeira pessoa” será a de considerá-la à luz da noção de ipseidade, conceito que, para Ricoeur, será central na análise do problema da manutenção da identidade pessoal. 

3. A identidade pessoal, segundo Paul Ricoeur

            Já no Prefácio de Soi-même comme un autre Ricoeur adverte que este título indica a convergência de três grandes intenções filosóficas. Duas delas nos interessarão de modo particular neste nosso propósito de dialogar com a tese de Baker: (1) sublinhar o caráter reflexivo do eu e (2) distinguir duas significações da identidade pessoal: mesmidade e ipseidade[10]. No que se refere à sua primeira intenção, cremos poder aproximá-la sem maiores dificuldades da constatação de Baker segundo a qual a referência em primeira pessoa é ineliminável e irredutível. Nas palavras de Ricoeur:

Não há equivalência, do ponto de vista referencial, entre ‘Eu estou contente’ e ‘A pessoa que se designa está contente’; este fracasso da prova de substituição é aqui decisivo; ele atesta que a expressão [em primeira pessoa] não pertence à ordem das entidades que podem ser identificadas pela via referencial. (RICOEUR, 1990, p. 61, trad. nossa).

            A experiência individual e corpórea que Baker, como vimos, colocava na base da perspectiva em primeira pessoa encontra também no pensamento de Ricoeur um espaço privilegiado na análise da identidade pessoal. A experiência individual de ser si-mesmo é, para Ricoeur, simplesmente irredutível e deve ser prioritariamente considerada em qualquer tratamento do problema da identidade pessoal. Ricoeur inclusive chega a cunhar um termo próprio para essa experiência: mienneté. O termo, que não se encontra nem mesmo num dos principais dicionários da língua francesa, o Robert[11], foi traduzido para a língua portuguesa por “minha totalidade”, tradução que falha em reproduzir o rico sentido que Ricoeur certamente pretendeu conferir ao termo – e que é central para nossa discussão –, qual seja, o de uma experiência de ser si-mesmo. (Cf. RICOEUR, 1990, p. 158). Essa ideia de uma experiência de ser si-mesmo – mienneté – nos parece também muito próxima da certeza de ser si mesmo delineada por Baker a partir da constatação de que eu sou eu, como vimos mais acima.
            A referência ao corpo também será fulcral para as reflexões ricoeurianas acerca da identidade pessoal. Não o corpo objetificado, passível de uma abordagem de cunho mais naturalista, mas sim o chamado corpo próprio, a vivência corpórea (Cf. RICOEUR, 1990, p. 46-47). Essa atenção especial dada à vivência corpórea por Ricoeur, no entanto, repercute numa postura metodológica radicalmente distinta da de Baker: enquanto esta recorre às inúmeras experiências de pensamento a fim de colocar à prova as hipóteses e consequências teóricas de determinadas assunções, Ricoeur preferirá escolher como modelo os personagens fictícios da literatura e não o que, para ele, são apenas elucubrações. Na visão de Ricoeur, os personagens fictícios são interessantes para pensarmos a questão da identidade pessoal justamente por serem verossímeis, ou seja, poderia muito bem ocorrer que eles existissem de fato. Isso já não ocorre com os personagens das experiências de pensamento filosóficas (como as pessoas resultantes do imaginado transplante de cérebros de Parfit ou da experiência surreal do teletransportador para Marte). Os personagens literários, ao contrário destes últimos, mantêm seu suporte da identidade, que para Ricoeur é notadamente a nossa “condição corporal vivida”:

As ficções literárias são fundamentalmente diferentes das ficções tecnológicas, posto que elas permanecem variações imaginativas em torno de um invariante, a condição corporal vivida como mediação existencial entre si e o mundo. Os personagens do teatro e do romance são humanos como nós. [...] Este traço caracteriza a condição terrestre enquanto tal e dá à Terra a significação existencial que, de diferentes maneiras, Nietzsche, Husserl e Heidegger lhe reconheceram. [...] Ora, o que os puzzling cases atacam diretamente é essa condição corporal e terrestre, colocando-a como contingência radical [...]. (RICOEUR, 1990, p. 178)
                                                       
            Assim, é tendo como eixo essa experiência individual e corpórea de ser si-mesmo que buscaremos destacar da obra de Ricoeur os elementos essenciais para explicar como ele concebeu a constituição da identidade pessoal. Já entrando, portanto, na mencionada segunda intenção de Soi-même comme un autre, cumpre enfatizar que Ricoeur não só conhece profundamente a problemática da identidade pessoal, bem como se insere nos debates contemporâneos em torno do tema, dialogando com diversos proponentes de soluções à questão. Ademais, é a partir das dificuldades oriundas dessas propostas mesmas que ele apresentará a sua abordagem particular da identidade pessoal. Nas suas palavras:

Os debates contemporâneos sobre a questão da identidade pessoal, muito vibrantes no campo da filosofia anglo-americana, me pareceram uma excelente ocasião para abordar diretamente a distinção entre mesmidade e ipseidade, sempre pressuposta nos estudos precedentes mas nunca tratada tematicamente. (RICOEUR, 1990, p. 138).
        
Numa palavra, para Ricoeur, qualquer análise da identidade pessoal que deixe de considerar expressamente essas duas dimensões da identidade pessoal – mesmidade e ipseidade – será parcial e incompleta. Antes de entrar numa explicação mais detida sobre esses dois aspectos da identidade pessoal, mencionemos de passagem a belíssima análise que Ricoeur faz das propostas de Locke e de Hume concernente ao problema da identidade pessoal, na qual explica em pormenores a confusão entre mesmidade e ipseidade na qual cada filósofo teria incorrido – confusão que, para Ricoeur, teria sido a geradora de conflitos intransponíveis em suas respectivas propostas de solução ao problema (Cf. RICOEUR, 1990, p. 150-154).

3.1. Mesmidade e ipseidade: dimensões da identidade pessoal

            A identidade pessoal, para Ricoeur, é composta por dois elementos irredutíveis um ao outro:

Recordo os termos da confrontação: de um lado, a identidade como mesmidade (latim: idem; inglês: sameness; alemão: Gleichheit), de outro lado, a identidade como ipseidade (latim: ipse; inglês: selfhood; alemão: Selbstheit). A ipseidade, eu tenho afirmado repetidamente, não é a mesmidade. (RICOEUR, 1990, p. 140).

Quando entramos na infindável busca por um critério objetivo de identidade pessoal – como as marcas materiais, tais como código genético e impressão digital –, estamos no reino da mesmidade. Quando, ao contrário, atentamos apenas para as relações causais entre diferentes momentos da vida da pessoa – como a questão ética da manutenção da palavra empenhada –, estamos no reino da ipseidade. Ocorre que, para Ricoeur, as duas dimensões da identidade devem ser levadas em conta em qualquer abordagem válida do problema da identidade pessoal. É assim que ele desenvolve a análise de dois modelos de permanência da pessoa no tempo: o caráter e a promessa. A sua análise não tem por objetivo vincular um modelo à mesmidade e o outro à ipseidade mas, ao invés disso, visa mostrar o complexo imbricamento dessas duas dimensões da identidade em cada um desses termos. Tentaremos reproduzir brevemente a sua análise.
Para Ricoeur, na noção de caráter são implicadas as duas dimensões da identidade – mesmidade e ipseidade – de tal modo que a mesmidade recobre a ipseidade. Isso ocorre de modo tão marcante que o caráter se apresenta quase como um núcleo da identidade do indivíduo. Para explicar como se dá esse recobrimento da ipseidade pela mesmidade, Ricoeur expõe a sua concepção do processo de aquisição e sedimentação de hábitos, a qual tentaremos reproduzir. A análise que Paul Ricoeur apresenta do hábito – que é baseada nas considerações de Félix Ravaisson (1813-1900), como ele mesmo indica – enfatiza duas etapas igualmente constitutivas do hábito: a primeira é a aquisição de uma disposição e a segunda é a sedimentação dessa disposição num traço de caráter. Na aquisição de uma disposição, são constatados os elementos de inovação e historicidade: todos sabemos quanto esforço e tempo são necessários para nos habituarmos a uma nova realidade ou condição, até que cheguemos ao ponto de nos colocarmos nela de modo automático (ex: aprender a dirigir, acostumar-se a usar óculos, adaptar-se às limitações físicas decorrentes de uma doença etc.). Quando, por fim, a disposição adquirida é sedimentada num traço de caráter, verificamos que as ações passam a ser desempenhadas de modo quase mecânico e impensado: Ricoeur chega mesmo a se referir ao hábito sedimentado como uma “segunda natureza” (Cf. RICOEUR, 1990, p. 144-148).
Segundo a análise ricoeuriana do caráter, a aquisição de uma disposição é associada à dimensão da ipseidade, ao passo que a sedimentação da disposição é associada à dimensão da mesmidade. A mesmidade recobre a ipseidade na medida em que quando uma disposição adquirida se sedimenta num traço de caráter, todo o processo de inovação e historicidade próprio da aquisição de um hábito cai no esquecimento. Mas esse recobrimento, longe de reduzir uma dimensão à outra, é antes revelador da coexistência de ambas na identidade pessoal:

Mas esse recobrimento do ipse pelo idem não chega a exigir que se renuncie à sua distinção. A dialética da inovação e da sedimentação, subjacente ao processo de identificação, faz com que nos recordemos de que o caráter tem uma história, a qual é contraída, pode-se dizer, no duplo sentido da palavra ‘contração’: abreviação e afecção. Isso é compreensível caso o polo estável do caráter possa revestir uma dimensão narrativa [...]: aquilo que a sedimentação contraiu, a narrativa pode tornar a expandir. E é a linguagem disposicional, defendida por Gilbert Ryle em The concept of mind, que anuncia esse desdobramento narrativo. (RICOEUR, 1990, p. 147-148).

Antes de entrarmos na solução narrativa que Ricoeur proporá para dar conta da dialética entre as dimensões idem e ipse da identidade – adiantada por Ricoeur na passagem acima – passemos a uma rápida explicação do segundo modelo de permanência da identidade que o filósofo analisa, qual seja, a promessa. Diferentemente do caráter, na promessa a dimensão da ipseidade é que prevalece sobre a da mesmidade, já que a manutenção da palavra anteriormente empenhada revela um esforço de manutenção de si mesmo em meio às mudanças pontuais relacionadas ao polo estável do caráter. Quando uma pessoa se decide por manter-se fiel à sua palavra empenhada, mesmo que, a rigor, o desejo ou condição que motivou a promessa anteriormente já não mais corresponda à situação presente, é a ipseidade que prevalece nesse tipo de permanência[12].
Se a tonalidade ética da identidade pessoal já poderia ser vislumbrada na análise que Ricoeur desenvolve do caráter, na sua análise da promessa ela salta aos olhos de modo incontestável. Se a promessa revela um modo de permanência no tempo, claro está que o que permanece, em sentido estrito, não é um elemento e tampouco um núcleo da identidade, mas, antes, o compromisso mesmo de manutenção de si. Trata-se de um modo de permanência que é levado a cabo pelo desejo de “responder à confiança que o outro deposita em minha fidelidade” (RICOEUR, 1990, p. 149).
Ora, a promessa parece, à primeira vista, colocar um desafio à explicação da permanência da identidade no tempo. Como assegurar, no esforço ético que caracteriza a manutenção da promessa, a dimensão da mesmidade? Não poderia a promessa ser pensada mais propriamente como um desafio à identidade pessoal? Ricoeur defenderá arduamente que não, argumentando que essa primeira impressão advém de uma má explicação acerca da conexão dos acontecimentos (no caso, a condição em que a pessoa se encontra num momento t1, quando faz uma promessa espontaneamente e a condição dessa mesma pessoa num momento t2, em que a promessa se torna, eventualmente, um fardo pesado que será cumprido por mero dever). Assim, ao invés de buscar um modelo causal de explicação da conexão dos acontecimentos, Ricoeur propõe que se busque o modelo narrativo. Para ele, somente o modelo narrativo permitirá compreender plenamente a dialética viva entre mesmidade e ipseidade, de modo a explicitar a complementaridade dessas duas dimensões na manutenção da identidade pessoal e jamais a sua mútua exclusão:

Mostraremos primeiramente [...] como o modelo específico de conexão entre acontecimentos que constitui a colocação em intriga permite integrar à permanência no tempo o que pareceria justamente o contrário, sob o ponto de vista da identidade-mesmidade, a saber, a diversidade, a variação, a descontinuidade, a instabilidade. (RICOEUR, 1990, p. 167-168).

Passemos agora a uma abordagem mais detida sobre o modelo narrativo de conexão de acontecimentos – o que Ricoeur chama também de colocação em intriga – a fim de fornecer uma melhor compreensão da constituição dialética da identidade pessoal em que mesmidade e ipseidade se complementam.

3.2. A identidade narrativa e o enfoque prático-linguístico da identidade

Paul Ricoeur concebeu a identidade narrativa como um conceito chave para explicar a junção das duas formas de identidade aludidas acima: a mesmidade e a ipseidade. Segundo a noção de identidade narrativa, podemos dizer que, grosso modo, uma pessoa permanece sendo a mesma pessoa ao longo do tempo por conta da narrativa que ela cria e com a qual se refere a si para os outros e sobretudo para si mesma. Mas como é que a narrativa pode conjugar mesmidade e ipseidade? O pressuposto básico da teoria de Ricoeur é de que na narrativa ocorre a constituição conjunta da ação e do personagem. Este pressuposto coloca em destaque um ponto importante sobre a constituição da identidade pessoal: esta se daria em meio a uma trama, sendo inseparável dela. Para dizer do modo o mais simples possível, não há para Ricoeur uma separação nítida entre o que somos e a nossa história (ou melhor, a história que contamos de nós mesmos).
A narrativa jamais será uma descrição impessoal, como poderia ser uma enumeração dos eventos ocorridos durante a cronologia da nossa vida. Ao invés disso, a narrativa é o resultado de um movimento dialético entre discordância e concordânciaDiscordância é o conceito que Ricoeur usa para se referir à multiplicidade de eventos, intenções, motivos e peripécias que perpassam nossa biografia; já concordância é o conceito com o qual ele nomeia o sentido de unidade ou totalidade que atribuímos à duração das nossas vivências. A concordância-discordância é reveladora da dialética viva entre mesmidade e ipseidade, consistindo no ato pelo qual fazemos prevalecer a unidade e a totalidade de sentido sobre a multiplicidade e heterogeneidade dos episódios de nossa vida. Esse ato só pode ser realizado a partir da constituição de uma narrativa, na visão de Ricoeur. Para explicar este conceito, Ricoeur faz alusão à noção aristotélica de poiésis:

Desse modo, eu tento dar conta das diversas mediações que a intriga opera – entre os diversos acontecimentos e a unidade temporal da história contada; entre os componentes díspares da ação – como intenções, causas e acasos – e o encadeamento da história. [...] Estas múltiplas dialéticas explicitam justamente a oposição, presente desde o modelo trágico segundo Aristóteles, entre a dispersão episódica da narrativa e a potência de unificação desdobrada pelo ato configurante que é a própria poièsis. (RICOEUR, 1990, p. 169, grifo do autor).

            Para explicar a constituição conjunta de personagem e intriga, Ricoeur se atém ao modelo da intriga e a partir daí explica a constituição do personagem. Ele chega a afirmar que “o personagem [...] é ele próprio colocação em intriga” (RICOEUR, 1990, p. 170). Isso porque a narração do personagem exige necessariamente que se estabeleça conexões entre ele e suas ações. Um outro elemento importante da constituição narrativa da identidade ou do personagem (que se dá juntamente com a ação, como já ficou claro) é que, na tessitura da narrativa, os acontecimentos fortuitos e casuais adquirem força de acontecimentos necessários e inevitáveis. Ricoeur afirma que “o acaso é transformado em destino” (RICOEUR, 1990, p. 175). Com isso, ele quer dizer que a narrativa, ao relacionar personagem e intriga (ou identidade pessoal e história), busca a unidade de sentido justamente a partir de conexões que não se encontram no mundo dos fatos naturais, mas tão somente na tessitura do discurso mesmo. Pensemos, por exemplo, na obra machadiana Dom Casmurro: como podemos conceber o personagem-narrador (Dom Casmurro) como sendo o mesmo que o personagem-narrado (Bentinho)[13]? Longe de qualquer critério objetivo possível, somente pela narrativa é que seria possível unir a personalidade vivaz, exuberante e inocente de Bentinho ao caráter solitário, triste e por vezes até mesmo perverso de Dom Casmurro já mais velho; é a história narrada que estabelece uma conexão entre o que o rapaz era e o que ele se tornara:

De acordo com minha proposta, a narrativa constrói as propriedades duráveis de um caráter, o que nós poderíamos chamar de identidade narrativa, por meio da construção de um tipo de identidade dinâmica encontrada na intriga, com a qual cria a identidade do caráter (RICOEUR, 2003, p. 195)

            Ora, mas comparar a constituição da identidade das pessoas reais com a construção de um personagem numa intriga ficcional (como um romance, por exemplo) é um procedimento mais confiável do que recorrer às experiências de pensamento? Ousaremos responder que sim. Ricoeur elenca quatro principais dificuldades com o modelo narrativo por ele proposto, as quais mencionamos de modo bastante sucinto (Cf. RICOEUR, 1990, p. 189-193). A primeira é que, na vida, autor, narrador e personagem são a mesma pessoa, condição que na arte pode muito bem ser transposta. A segunda diz respeito às noções de começo e fim, que são bem diferentes na vida e na arte: a obra acaba ao final da escrita, ao passo que a vida ninguém sabe quando acabará (de modo que não temos como ir nos preparando para a “conclusão” de nossa narrativa autobiográfica). A terceira dificuldade diz respeito à pluralidade de narrativas na qual nos encontramos: na narrativa literária, o personagem se encontra ligado a uma obra específica, de modo que sua identidade pode ser totalmente abarcada a partir desta obra. Já na narrativa autobiográfica, a identidade das pessoas não se encontra encerrada em suas narrativas pessoais apenas: antes, ela se encontra espalhada em várias histórias diferentes (por exemplo, a narrativa de nossos pais, de nossos colegas de trabalho, de nossos filhos, de nossos alunos etc.). Essas narrativas alheias chegam inclusive a influenciar a confecção de nossas narrativas pessoais. Por fim, uma quarta dificuldade apontada diz respeito à plasticidade da identidade narrativa das pessoas: na arte, a narrativa só pode ser alterada na direção do futuro (por exemplo, publicação de um segundo volume de um romance, dando um outro rumo para a vida do personagem). Já na vida, a narrativa sempre pode ser desfeita e reconstruída, seja em direção ao futuro mas também em direção ao passado. Quanto a isto, cumpre observar a possibilidade sempre em aberto de adotarmos um discurso inteiramente novo conferindo um outro significado às ações que narramos anteriormente; Ricoeur dirá que a reconstituição narrativa de nós mesmos é uma possibilidade que só termina quando morremos.
Diante dessas quatro constatações, a pergunta que fica é se realmente podemos ainda falar de unidade narrativa de uma vida para além dos limites dos personagens literários. Ricoeur responderá que sim, pois a tarefa de atribuição de sentido à nossa existência é levada a cabo por meio da configuração de um texto, e este texto é, em grande medida, configurado a partir da influência de outros tantos “textos” existentes e difundidos na nossa cultura[14], entre os quais Soi-même comme un autre destaca as obras literárias:

Sendo assim, concluímos que narrativas literárias e histórias de vida, longe de se excluírem, se completam, apesar de – ou devido a – seu contraste. Esta dialética nos faz recordar que a narrativa faz parte da vida antes de se exilar dela na escrita; ela [a narrativa] retorna à vida pelas vias múltiplas da apropriação e ao preço das tensões invencíveis que acabamos de abordar. (RICOEUR, 1990, p. 193).


4. O caráter narrativo da perspectiva em primeira pessoa

Feita essa exposição muito sucinta dos principais aspectos das propostas dos dois filósofos para pensarmos a constituição e permanência da identidade pessoal, chegamos finalmente ao nosso objetivo, que é o de ensaiar uma concepção talvez incomum sobre a manutenção da identidade pessoal ao longo do tempo, qual seja, a de que esta permanência se daria por meio da manutenção narrativa de uma mesma perspectiva em primeira pessoa.
Um ponto positivo que enfatizamos na tese de Baker acerca da manutenção da identidade pessoal foi o caráter fluido e aparentemente vago da ideia mesma de perspectiva em primeira pessoa. Longe de querer propor uma abolição deste caráter, a nossa reflexão caminha no sentido de tentar explicar como é possível que essa fluidez da perspectiva em primeira pessoa embase a certeza de ser si mesmo característica da identidade pessoal. É neste ponto que propomos conceber a perspectiva em primeira pessoa como uma compreensão narrativa de nossa própria vida. Uma compreensão que, conforme as reflexões de Ricoeur, só pode ser mediada pelo discurso. Assim, continuamos sem ter elementos para determinar se um indivíduo manteve ou não a mesma perspectiva em primeira pessoa; no entanto, podemos desenvolver a análise em outra direção, sustentando que quando um indivíduo se instala numa mesma perspectiva em primeira pessoa, esse instalar-se envolve uma retomada hermenêutica de uma narrativa de vida. Essa retomada envolve sempre uma recriação, num movimento interminável de concordância-discordância. É como se o instalar-se na mesma perspectiva fosse ele próprio, de algum modo, co-criador da própria perspectiva.
É por isso justamente que indicamos mais acima o problema em se falar em mesmidade da perspectiva em primeira pessoa. Se aceitarmos considerar o caráter narrativo da perspectiva em primeira pessoa, a sua manutenção estará muito melhor amparada pela ideia de ipseidade do que pela de mesmidade. Isso porque, contrariamente à mesmidade, a dimensão ipse da identidade não exige a posse de si mesmo, nem mesmo no sentido mais volátil da posse de um mesmo “lugar de onde se fala”. Na verdade, a ipseidade se caracteriza muito mais propriamente como um modo “modesto de manutenção de si”, em contraposição a um “orgulho estóico de uma rígida constância a si” (RICOEUR, 1990, p. 198).
Se seguirmos na direção aberta por essa hipótese, a identidade pessoal se caracterizaria pela manutenção da perspectiva em primeira pessoa, desde que essa manutenção seja considerada um caso em que é a ipseidade quem recobre a mesmidade e não o inverso. Isto significaria que manter a perspectiva em primeira pessoa envolveria muito mais um compromisso com nossas ações e palavras passadas do que um feliz reencontro de um eu passado com um eu presente. Manter a mesma perspectiva em primeira pessoa envolveria a evocação da perspectiva passada, por meio da qual o indivíduo se reapropriaria das relações constitutivas de outrora (com o mundo e com seu corpo). A mienneté de Ricoeur – ou o Eu sou eu de Baker – seriam, no fundo, o resultado sempre provisório de um processo interminável de busca por igualar-se a si mesmo.
            Isso significa que a identidade pessoal é uma mera crença, como Hume já postulava no Séc. XVIII? Sim e não. Sim, pois, como já foi indicado diversas vezes ao longo de nosso texto, o que se propõe é um tratamento prático do problema da identidade pessoal, de modo que as exigências teóricas de uma justificação da identidade pessoal não são centrais no horizonte de nenhum dos dois autores. Mas, ao mesmo tempo, não, já que, à diferença de Hume, o que se está propondo pela convergência das teses de Baker e de Ricoeur é que esta crença que embasa a certeza de ser si mesmo é algo legítimo e não uma mera ilusão. Tanto Ricoeur como Baker encaram com bons olhos a possibilidade, sempre presente, do erro com relação à certeza de ser si mesmo:

Quando alguém usa ‘eu’ literalmente e sinceramente – mesmo em um contexto como ‘Eu imagino que eu sou Napoleão’ – ambas as ocorrências de ‘eu’ [isto é, como sujeito e como objeto referencial] se referem ao falante. Eu posso imaginar que a pessoa a quem eu faço referência em primeira pessoa (i.e., L. B.) é Napoleão. Mas, não importando quão fingida ou confusa eu esteja – os usos sinceros e literais de ‘eu’ em minha boca (e.g., eu não estou fazendo nem uma citação, nem uma encenação) se refere a mim (L. B.). (BAKER, p. 71-72)

            Ricoeur, indo ainda mais longe, inclusive propõe que a certeza com relação à identidade pessoal, sendo do tipo hermenêutico, escapa à alternativa verdade versus falsidade, devendo ser compreendida não como uma prova, mas como uma atestação[15]:

[...] um outro senso de certeza é acarretado, um senso que se chama atestação. Trata-se, dirá, de uma forma de crença não doxológica; ou seja, não é uma forma fraca de conhecimento científico. Antes, liga-se à noção de testemunho, no sentido de que os eus atestam sua identidade e responsabilidade através do testemunho sobre si mesmos. Obviamente, esse tipo de certeza é sempre frágil sob certos aspectos, [...] porque é sempre ameaçado pela suspeita [...] Mas esse é o preço a pagar por um discurso ciente de sua própria falta de fundamentação e, implicitamente, o preço a pagar por ser um eu. (PELLAUER, p. 125, grifos do autor)

Um ponto a ser notado nessa hipótese de pensar a identidade pessoal como manutenção narrativa de uma perspectiva em primeira pessoa diz respeito à dependência da identidade pessoal em relação à memória. Podemos dizer que toda tese que recorre à memória para explicar a permanência da pessoa no tempo é assolada, mais cedo ou mais tarde, pela dificuldade em relação às perdas de memória, em particular a amnésia. As soluções ao problema da identidade pessoal que repousam sobre algum tipo de continuidade psicológica baseada na memória têm, em geral, dificuldade para explicar como pode se dar a manutenção da identidade pessoal na falta da memória. E, no entanto, a literatura, o cinema e até mesmo a clínica neurológica ilustram abundantemente a possibilidade de manutenção da identidade pessoal mesmo em meio à falta de memória[16]. Segundo a hipótese que estamos aventando, a manutenção da identidade pessoal poderia se dar em uma relação mais independente em relação à memória. Isto se explicaria do seguinte modo: uma narrativa é algo criado no presente, é uma criação presente, que pode se enriquecer com os dados mnemônicos – sem dúvida – mas que igualmente pode sobreviver na falta deles. Uma criação e recriação contínua é o que é a identidade pessoal, entendida como a manutenção narrativa de uma mesma perspectiva em primeira pessoa. A memória requerida para esse tipo de manutenção não é prioritariamente uma memória cognitiva, semântica ou episódica, mas, antes, uma memória das vivências corpóreas e uma memória da aquisição de hábitos. Enfim, uma memória que não pretende resgatar o passado, mas antes recriar o seu sentido no presente mesmo[17].
            Por fim, se a ideia de identidade narrativa poderia contribuir para desenvolver a tese da manutenção da perspectiva em primeira pessoa, acreditamos que talvez seja possível conceber uma influência também na direção inversa. Estamos nos referindo especificamente à análise ricoeuriana do tipo de manutenção de si envolvido pela promessa. É uma dificuldade explicar a manutenção da promessa naqueles casos em que a dimensão idem da pessoa tenha se alterado significativamente. A questão pode ser circunscrita: por que, afinal de contas, chega-se a desejar a fidelidade à palavra empenhada? Talvez um caminho promissor para explicar essa vontade de igualar-se a si mesmo no esforço de manutenção de uma promessa possa ser empreendido partindo-se do seguinte: somente após instalar-se narrativamente numa perspectiva em primeira pessoa, é possível que surja o comprometimento com a palavra empenhada anteriormente. Este ponto deverá, naturalmente, ser melhor investigado em outra oportunidade.

Conclusão

            A hipótese de se pensar a identidade pessoal enquanto uma constituição dinâmica que se dá pela manutenção narrativa de uma perspectiva em primeira pessoa pode ser muito promissora, porém merece um desenvolvimento muito mais amplo do que o que apresentamos aqui. Indicaremos os principais problemas que deverão ser encarados por todo aquele que pretenda enveredar por este caminho.
            Primeiramente, é preciso avaliar as implicações da concessão que é pedida de saída, qual seja, de se estabelecer uma suposta centralidade do aspecto proposicional na perspectiva em primeira pessoa. Será preciso se questionar sobre a viabilidade, no contexto da tese da constituição de Baker, de se pensar a perspectiva em primeira pessoa como um pensamento proposicional e, além disso, de se conceber a manutenção desse pensamento proposicional como só sendo possível no contexto mais amplo da criação discursiva. A partir do texto de Baker estudado, temos poucos elementos para proceder a uma tal avaliação. Acreditamos que talvez fosse necessário um estudo que considerasse também as críticas à narrativa enquanto recurso para sustentar a identidade, empreendimento que ficará sugerido para um momento futuro[18].
            É verdade que Baker considera, ainda que muito brevemente, a proposta de um eu narrativo para se pensar o problema da identidade pessoal, a partir da análise das reflexões de D. Dennett e de O. Flanagan (Cf. BAKER, p. 87-88). Sem entrar no mérito dessas propostas diretamente, ressaltamos que o que Baker critica nessas aproximações é, em primeiro lugar, que a noção de eu é muito mais encorpada do que a de perspectiva em primeira pessoa e, em segundo lugar, que a narrativa propõe um “modelo de eu”, o que permitiria apenas um acesso em terceira pessoa e não em primeira pessoa.
Quanto à primeira crítica, jamais pretenderemos negar que a ideia de perspectiva em primeira pessoa é mais básica que a de eu. Contudo, indagamos se a perspectiva em primeira pessoa seria totalmente alheia à ideia que o eu faz de si mesmo, a qual seria constituída – segundo temos defendido com Ricoeur – pela configuração narrativa. Para responder a esta pergunta, seria necessário começar por uma investigação mais sistemática de outras obras da autora.
Quanto à segunda crítica, gostaríamos de sublinhar a distância imensa que separa a proposta de Ricoeur em relação às propostas mencionadas acerca do eu narrativo. Quando Ricoeur faz uma aproximação entre a configuração narrativa da identidade pessoal e a constituição conjunta de ação e personagem num romance, de forma nenhuma ele defende que a identidade pessoal se constitui na recepção passiva de um modelo narrativo. Quanto a isto, vale sublinhar que Ricoeur chama a configuração narrativa de “composição da intriga” ou “colocação em intriga”[19], focando justamente o caráter ativo e criativo da operação subjetiva de constituição de uma narrativa. Ademais, talvez não seja inoportuno sublinhar que a proposta ricoeuriana para o problema da identidade pessoal surge no contexto mais amplo de sua reflexão sobre a constituição conjunta entre tempo e narrativa, a qual, meditando sobre os pontos de convergência entre narrativa histórica e narrativa ficcional, contribui de forma notável para uma abordagem ontológica da narratividade humana.
Um segundo problema a ser enfrentado pela nossa hipótese se refere ao estatuto do corpo. Na hipótese que conjuga elementos das teses de Baker e de Ricoeur, qual seria a concepção de corpo que adotaríamos, afinal? Apesar de algumas proximidades no que se refere à vivência corpórea, Baker e Ricoeur diferem drasticamente em relação à possibilidade de transferência de corpos. Este ponto, portanto, mereceria uma reflexão mais detida num momento futuro. Outro ponto que precisaria ser seriamente investigado é a relação mesma que o indivíduo mantém com seu corpo próprio. Temos destacado aqui os elementos proposicionais dessa relação, porém uma investigação mais minuciosa deverá considerar igualmente os elementos intuicionais dessa relação. A não consideração desses elementos nos parece ser o ponto mais frágil da presente exposição.
            Por fim, uma terceira tarefa a ser encarada seria a de se empreender uma investigação acerca da posição de Baker quanto à inserção gradativa do problema da identidade pessoal no campo da Ética. Segundo as reflexões de Ricoeur sobre a identidade narrativa, esta inserção é tão forte que podemos dizer que constitui uma de suas marcas distintivas[20].

Referências
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SACKS, O. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. Trad. Laura T. Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.




 Este texto é uma versão preliminar do artigo de mesmo título a ser publicado em: BROENS, M.C.; MORAES, J.A.; SOUZA, E.A. (Orgs). Informação, Complexidade e Auto-Organização: Estudos Interdisciplinares. Edição especial em homenagem à Profa. Dra. Maria Eunice Quilici Gonzalez. Marília/Campinas: Cultura Acadêmica/UNESP e Coleção CLE. (no prelo)

[1] Cf. O capítulo I: “Hermenêutica e estruturalismo” (p. 53-143) da primeira coletânea de textos de Ricoeur sobre hermenêutica, publicada em 1969, intitulada Le conflit des interprétations (Seuil).

[2] “Événement”, noção central no pensamento contemporâneo de vários filósofos, entre os quais destacamos Foucault e Deleuze. Em Ricoeur, cf. sua segunda coletânea de textos sobre hermenêutica, publicada em 1986, intitulada Du texte à l’action (Seuil), em particular a seção “L’effectuation du langage comme discours” (p. 103-107).

[3] Esta noção aparece no tomo I de Tempo e narrativa (Martins Fontes, 2010 [1983]) e, com maior envergadura, na obra que, segundo Ricoeur, seria sua “irmã gêmea”, A metáfora viva (Loyola, 2000 [1975]).
[4] No original, “constitution view”. Optamos por não usar a tradução mais habitual por “perspectiva da constituição”, a fim de evitar a repetição cansativa do termo “perspectiva”, central em nosso texto.

[5] Para Baker, pessoa e pessoa humana são conceitos diferentes, sendo o primeiro mais básico. O que define uma pessoa, para Baker, é a capacidade de apresentar uma perspectiva em primeira pessoa, não importando se ela possui uma relação de constituição com um corpo humano ou com outro tipo de corpo material. Assim, desde que um indivíduo apresente a capacidade para a perspectiva em primeira pessoa, ele é considerado uma pessoa, segundo a visão da constituição. Esta tese de Baker não terá grande impacto para o recorte preciso que estamos fazendo na leitura de seu texto, porém será central para o contexto em que Baker desenvolve sua teoria. Esta separação das noções de pessoa e de ser humano permitirá, por exemplo, a sua defesa da possibilidade da transferência de corpos (Cf. BAKER, 2000, p. 141-145).
[6] É evidente que, para estender com segurança ao reino vegetal a noção de perspectiva – coisa que a autora mesma não faz – duas questões teriam de ser investigadas: a primeira é se os vegetais podem ser considerados seres sencientes, no contexto da proposta de Baker; a segunda é se os movimentos das plantas em busca de nutrientes e de luz solar podem ser considerados uma ação em sentido estrito.

[7] A autora faz uma distinção entre fenômeno forte e fenômeno fraco de primeira pessoa, explicando que ter uma perspectiva deve ser pensado em termos de graus. Ela alude a muitas experiências reais com chimpanzés, os quais, apesar da inteligência espantosamente exibida (como auto-reconhecimento e um tipo rudimentar de auto-consciência), não chegam a ser considerados uma ocorrência de fenômeno forte de primeira pessoa. Não teremos condições de desenvolver aqui as sutilezas dessa análise, nos limitando a sublinhar que, para Baker, somente os fenômenos fortes de primeira pessoa são considerados casos de perspectiva em primeira pessoa (Cf. BAKER, 2000, p. 61).
[8] O sinal de asterisco (*) aparece como uma estrela no texto original. A autora explica que usar um pronome seguido de uma estrela é uma maneira comum de indicar o uso reflexivo do pronome em questão, grafia cujo pioneiro teria sido Hector-Neri Castañeda (Cf. BAKER, p. 65, nota 12): “O que é especial sobre ‘eu*’ é que eu posso conceber aquela pessoa de um modo que você não pode, a partir ‘de dentro’, por assim dizer”. (BAKER, p. 68).
[9] Cf. BAKER, p. 62-64. Na primeira experiência, chimpanzés foram ensinados a reconhecer seus corpos no espelho como sendo seus próprios corpos. Na segunda, macacos-rhesus exibiram um comportamento com contorno ético, na medida em que tomaram a decisão de deixar de comer a fim de evitar que seus semelhantes levassem um choque.
[10] Cumpre esclarecer, a título informativo, que a terceira intenção abarcada pelo título dessa magistral obra é, segundo Ricoeur, a de conceber a identidade pessoal no contexto da dialética entre o si e a alteridade. Reconhecemos que deixar de considerar o tema da alteridade na exposição que Ricoeur faz da identidade pessoal é quase uma mutilação de sua rica análise, a qual esperamos encontrar alguma desculpa devido aos limites deste artigo.
[11] Cf. REY, A. (Dir.) Le Petit Robert micro(Paris, 2013).
[12] Para uma discussão mais ampla do estatuto da promessa em Ricoeur, cf. MICHEL, Johann. Ricoeur et ses contemporains (PUF, 2013), especialmente a seção “La promesse et ses dilemmes” (p. 35-43), onde o autor sugere um desenvolvimento da noção de promessa em Ricoeur apontando dois tipos de manutenção da palavra empenhada, a saber, a decisão ativa e a fidelidade implícita aos deveres tácitos.
[13] Cf. ASSIS, M. Dom Casmurro (Cepal, 2009).
[14] Uma obra em que Ricoeur desenvolve a noção de texto é a já mencionada coletânea de 1986, Du texte à l’action. Cf. particularmente o capítulo “La fonction herméneutique de la distanciation” (p. 101-118): “Que saberíamos nós do amor e do ódio, dos sentimentos éticos e, em geral, de tudo aquilo que nós chamamos o si, se isto não tivesse sido trazido à linguagem e articulado pela literatura?” (RICOEUR, 1986, p. 116, grifo do autor).

[15] Cf. o Décimo Estudo de Soi-même comme un autre (p. 345-410).

[16] Cf., por exemplo, o filme Memento (Amnésia), dirigido por Christopher Nolan (Newmarket Films, 2000). Cf. também o capítulo “O marinheiro perdido” do livro de Oliver Sacks intitulado O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. (Cia. das Letras, 1997). Tanto o filme de Nolan quanto o relato clínico de Sacks sugerem que, de algum modo, personagem e paciente, respectivamente, encontraram maneiras peculiares de manter suas identidades pessoais ao longo do tempo apesar de seus graves distúrbios mnemônicos.

[17] Para um melhor desenvolvimento desta instigante temática, sugerimos o tomo II da obra que Ricoeur escreveu em três volumes na década de 1980, Tempo e narrativa (Martins Fontes, 2010 [1984]), em particular a seção 3 do capítulo 4, “A experiência temporal fictícia”, em que Ricoeur analisa o reencontro do tempo vivido pelo tempo narrado na monumental obra de Proust, Em busca do tempo perdido.
[18] Para este propósito, indicamos, inicialmente, um artigo de John Christman intitulado Narrative unity as a condition of personhood. (Metaphilosophy, October 2004, p. 695-713).

[19] “Mettre en intrigue”. Cf. tomo I de Tempo e narrativa (Martins Fontes, 2010[1983]), em particular o capítulo 3 da Primeira parte: “Tempo e narrativa: a tripla mímesis” (p. 93-147).

[20] Uma análise mais ampla da dimensão ética da identidade pessoal pode ser encontrada no artigo Narrative identity, practical identity and ethical subjectivity, de Kim Atkins (Continental Philosophy Review, 2004, p. 341-366). 



*As ideias e informações publicadas neste artigo são de total responsabilidade do seu autor.

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