quinta-feira, 23 de julho de 2015

A crítica de Darwin ao argumento teleológico de Paley



Autor: Maxwell Morais de Lima Filho
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará e Professor do Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Artes da Universidade Federal de Alagoas 
 Contato: max.biophilo@gmail.com 


Cada corpo organizado, nas disposições que contém para a sua manutenção e propagação, atesta um cuidado por parte do Criador expressamente direcionado para esses fins. (...) As obras da natureza querem apenas ser contempladas – William Paley

 O organismo mais insignificante é um tanto mais elevado do que a poeira orgânica debaixo dos nossos pés e ninguém que use de imparcialidade pode estudar uma criatura vivente, mesmo que seja humilde, sem entusiasmar-se diante de sua estrutura e das suas características maravilhosas – Charles Darwin 



1. Introdução
  
       Do início da filosofia até aos dias atuais, esta questão tem constantemente permeado os debates filosóficos: Deus[2] existe? Ao longo da história, foram propostos argumentos com o intuito de demonstrar racionalmente a existência de Deus. Podem-se dividir, para efeitos práticos[3] , tais argumentos em quatro tipos, a saber: ontológico, cosmológico, kalam[4] e teleológico. Apenas esse último será tratado neste texto. 
    O argumento teleológico ou argumento do desígnio[5] foi apresentado de diversos modos no decorrer do tempo, sendo bastante famosa a Quinta via de Tomás de Aquino e a própria versão de Paley, que será abordada logo abaixo. Apesar das diferenças, pode-se dizer que esse argumento tenta demonstrar que a natureza foi planejada com algum tipo de propósito ou finalidade (daí o nome teleológico), já que quando a contemplamos encontramos sinais nítidos de desígnio. 
    Os organismos biológicos, especificamente, aparentam em máximo grau terem sido planejados, haja vista a intricada complexidade biológica de seus corpos. No que se segue, apresentarei dois modos distintos de explicar o desenho e a complexidade biológica, a primeira delas invoca um Deus pessoal onipotente, onisciente, onipresente, eterno e sumamente bom (seção 2), enquanto a outra explicação prescinde de um Planejador sobrenatural e se baseia tão-somente em um processo cego sem qualquer tipo de antevisão (seção 3). Pretendo mostrar que essa última explica adequadamente a complexa estrutura biológica do olho[6] ao mesmo tempo em que demonstro que não há qualquer evidência de planejamento inteligente desse órgão (seção 4). 

2. O Argumento Teleológico de William Paley

      William Paley nasceu em 1743 em Peterborough e estudou no Christ’s College, em Cambridge. Apesar de não ter sido um pensador original, ele escrevia de modo entusiástico e apaixonante; o seu último e mais famoso livro – Teologia Natural[7] – não é exceção à regra. A temática geral desse livro está bem delineada em seu subtítulo, já que o autor objetiva “demonstrar as evidências da existência e dos atributos da Divindade reunidos a partir dos indícios da natureza”, notadamente no que se refere às estruturas biológicas. 
     A teologia natural[8] não é recente (remonta pelo menos à Grécia antiga) e, a despeito da dificuldade de defini-la precisamente[9] , pode-se ter em mente que ela está relacionada à prática de inferir a existência de Deus a partir do mundo (EDDY & KNIGHT, 2006, p. ix), ao conjunto dos argumentos sobre a existência de Deus (PORTUGAL, 2006, pp. 314-5), ou à ideia de que há uma conexão entre o mundo observável e um domínio transcendente (McGRATH, 2011, p. 12). No que se refere à teologia natural inglesa, ela surge em meio a  um conturbado cenário político e religioso no final do século 17, sendo responsável por contrabalançar as visões ateístas e materialistas que surgiram durante esse período[10]. Ela despertou interesse na Inglaterra dessa época por, pelo menos, três fatores – (i) o surgimento da crítica bíblica, (ii) o crescimento da desconfiança na autoridade eclesiástica e (iii) o desgosto pela religião organizada e pelas doutrinas cristãs (McGRATH, 2011, pp. 50-3).
      Os teólogos naturais ingleses defendiam a existência de Deus a partir de dois tipos distintos de argumentos (McGRATH, 2011, p. 53) – os argumentos do desígnio (observação da ordem: “a ordem implica um Ordenador”) e para o desígnio (evidência de projeto: “não existe propósito sem um Ser que o confira sentido”). Esta segunda abordagem é característica da concepção de teologia natural conhecida como físicoteologia[11], concepção da qual o livro de Paley é tanto um ponto de referência quanto o apogeu. 
     Apesar da ordem e da racionalidade do mundo que é governado pelas leis newtonianas[12], o Universo não é o candidato ideal para “provar” a existência de um “Criador inteligente”, pois o desígnio é deduzido a partir da complexidade do artifício, ou seja, “da relação, do ajuste e da correspondência entre as partes” de determinada estrutura (PALEY, 2006, p. 199). Sendo assim, Paley concede especial atenção aos organismos e estruturas biológicas (olho, coração, articulações etc.), pois estes possuem a complexidade necessária para fundamentar o seu argumento.  
     Paley (2006, p. 7) inicia a sua Teologia Natural com uma passagem que ficou célebre. Ele pede que se imagine o seguinte: caso alguém topasse em uma pedra enquanto andava e se perguntasse como ela havia parado ali, não seria absurdo, diz Paley, que se respondesse que a pedra sempre estivera ali. Entretanto, prossegue ele, o mesmo não poderia ser dito caso a pessoa em questão tivesse encontrado um relógio, ou seja, seria totalmente insensato acreditar que o relógio estava no local desde sempre: a existência do relógio  exige uma explicação diferente da que é dada para a pedra. Por quê? Para responder isso, basta que se analise o relógio e, mesmo que não se saiba dos pormenores de sua origem e de seu funcionamento, observar-se-ia o seguinte: o ajuste preciso de várias molas, engrenagens e outras peças é o responsável pelo movimento, devido a um intricado mecanismo, dos ponteiros do relógio. Esse movimento dos ponteiros, que é visível por causa da transparência do vidro, tem o propósito de marcar as horas do dia.
    Diferentemente da observação da pedra, uma inferência inevitável surge da análise do relógio (PALEY, 2006, p. 8): a complexidade do mecanismo e a finalidade do relógio só são devidamente explicadas por um (ou mais) relojoeiro que o projetou e o montou[13], ou seja, deve existir uma mente inteligente e intencional por trás do intricado artifício adaptado à função cronométrica do relógio (PALEY, 2006, p. 12-5). E o que dizer acerca da natureza? Do mesmo modo que no exemplo do relógio, há também na natureza nítidas manifestações de desígnio, contudo, as “obras da natureza” exprimem um grau muito maior de complexidade e propósito, refletindo a superioridade e a perfeição da mente que as produziu. Superioridade essa em comparação com a inteligente, porém, finita e imperfeita mente do relojoeiro humano: as obras da natureza compartilham com o relógio “toda indicação de artifício” e “cada manifestação de desígnio”, com a importante diferença de que eles são quantitativa e qualitativamente superiores naquelas, predomínio “num grau que excede todo cálculo” (PALEY, 2006, p. 16).
      Como dito anteriormente, Paley se utiliza de variadas estruturas biológicas – ossos, articulações, músculos etc. – com o intuito de demonstrar o seu argumento: a análise dessas complexas e intrincadas estruturas nos leva a postular um Projetista inteligente por trás das mesmas. Por questões de espaço, restringir-me-ei ao exemplo do olho para ilustrar esse ponto (PALEY, 2006, pp. 16-28).
      A constatação de semelhanças estruturais e da obediência aos mesmos princípios ópticos entre o telescópio e o olho leva à conclusão que esse órgão foi projetado intencionalmente para a visão (PALEY, 2006, p. 16). Paley faz mais do que sugerir uma mera analogia[14] entre a estrutura e o mecanismo de um instrumento humano, por um lado, e um instrumento biológico, por outro. Ele aponta, na verdade, para uma identidade: como o olho é um mecanismo, infere-se que ele foi inteligente e intencionalmente projetado (McGRATH, 2005a, pp. 129-30; 2005b, p. 301). A partir desse exame, Paley chega à conclusão de que “o olho foi feito para a visão” da mesma maneira que o “telescópio foi feito para auxiliá-la”, ou seja, as funções da visão e do telescópio partilham exatamente da mesma prova de desígnio e, portanto, da inferência de um designer que os projetou e os construiu. Por conseguinte, só é possível explicar a correlação biológica entre a forma (anatomia) do olho e a sua função (visão) a partir do desígnio divino: o olho, para ser repetitivo, foi feito para ver (PALEY, 2006, p. 16; GOULD, 1993, p. 148; DAWKINS, 2005, p. 23; McGRATH, 2011, pp. 94-5). 
    Abordarei no que se segue o mecanismo evolutivo que foi proposto quase 60 anos após o argumento do desígnio de Paley: a seleção natural.  

3. Charles Darwin e o Mecanismo de Seleção Natural

    Charles Robert Darwin e William Paley compartilhavam[15] o país de origem, os estudos em Cambridge e a defesa do argumento do desígnio[16]: durante toda a sua viagem a bordo do H.M.S. Beagle (1831-1836), o naturalista inglês ainda possuía uma visão teísta cristã e acreditava, por conseguinte, que o Deus pessoal da Bíblia havia projetado e criado os seres vivos[17] .
     Entretanto, a concepção de Darwin se distanciou bastante da posição de Paley quando, por volta de 1837-38, ele descobriu o mecanismo de seleção natural e se deu conta de que as espécies não eram fixas[18]. Tendo em mente o principal mecanismo explicativo do processo evolutivo, Darwin (2000, p. 75) chegou à seguinte conclusão:

                                O antigo argumento do plano da natureza, tal como exposto por Paley, e que antes me parecia tão conclusivo, cai por terra, agora que a lei da seleção natural foi descoberta. Já não podemos argumentar, por exemplo, que a bela articulação de uma concha bivalve deve ter sido feita por um ser inteligente, do mesmo modo que o homem criou as dobradiças das portas. Parece haver tão pouco planejamento na variabilidade dos seres orgânicos e na ação da seleção natural quanto na direção em que sopra o vento. Tudo na natureza é resultado de leis fixas. 

      Para explicar como essa “lei” biológica – descoberta independentemente por Wallace19 – foi responsável por essa drástica mudança de perspectiva de Darwin, farei um breve resumo das ideias centrais da primeira parte do livro A Origem das Espécies[20] (capítulos 1- 4), publicado originalmente em 1859.  
        A intenção geral de Darwin nesse livro é defender e fundamentar que os organismos descendem de um ancestral comum e evoluem por seleção natural (principal, mas não o único mecanismo evolutivo)[21]. Darwin (2006) constatou que se as espécies estivessem em condições favoráveis, o seu crescimento populacional se daria de modo exponencial. Contudo, as populações de organismos em geral são estáveis, e essa estabilidade decorre da limitação dos recursos naturais. Devido à escassez de recursos, há uma competição[22] ferrenha entre os indivíduos – luta pela existência (capítulo 3) –, onde alguns irão sobreviver e outros não. Caso se observe atentamente, ver-se-á que os indivíduos de uma mesma população são diferentes no que se refere a muitas características anatômicas, fisiológicas e/ou comportamentais (capítulo 2), e muito dessa variabilidade é transmitida dos progenitores aos seus descendentes[23]. Isso significa que os indivíduos portadores de características vantajosas levarão vantagem na luta pela existência em relação aos que não as possuem (maior probabilidade de sobrevivência). Os organismos que vivem mais, por sua vez, têm maior chance de se reproduzir (sucesso reprodutivo) e, portanto, de passar essas características aos seus descendentes, e assim sucessivamente. A sobrevivência desigual dos indivíduos de uma população se dá por seleção natural (capítulo 4), um processo semelhante à seleção artificial[24] (capítulo 1) utilizada pelo homem na domesticação de animais e plantas. A atuação da seleção natural ao longo de muitas gerações acarretará uma mudança contínua e gradual das populações, mudança essa que é chamada de evolução biológica.
        Com o intuito de explicar melhor a atuação da seleção natural, Darwin (2006, pp. 507- 8) pede que imaginemos que um lobo cace diversos tipos de presas. Dependendo do tipo de presa, o sucesso pode ser alcançado por diferentes características do canídeo – devido à “astúcia”, “força” ou “agilidade”, por exemplo. Suponhamos ainda, prossegue ele, que haja bastantes cervos e que eles sejam o tipo de presa mais rápida do lobo. O que aconteceria nessa situação? Ora, já que as características na população de lobos são variáveis, os que “forem mais ágeis e velozes” teriam maior sucesso na captura de cervos, aumentando a probabilidade de sobrevivência e de sucesso reprodutivo, transmitindo, consequentemente, tais características vantajosas para as suas crias[25]. Uma população mais ágil e veloz, portanto mais adaptada, seria o resultado desse processo de variação, seleção e herança atuando em numerosos lobos ao longo de milhares de gerações.  
        Caso se queira representar em uma imagem esse longo e gradual processo, deve-se imaginar uma imensa e frondosa árvore, onde as espécies são representadas pelos terminais de seus galhos mortos (espécies extintas) e vivos (espécies atuais). Lembrando-se, é claro, que esse processo é dinâmico, ou seja, alguns dos atuais ramos irão perecer (espécies que se extinguirão), bem como ainda brotarão ramos novos (espécies que surgirão). Apesar de não explicar a origem da vida, Darwin supõe que ela surgiu de uma ou algumas poucas espécies ancestrais[26]. Na prática, isso significa dizer que todos os seres vivos que existiram, existem e existirão na Terra são aparentados em maior ou menor grau, pois compartilham a mesma raiz. Em resumo, essa é a representação da árvore da vida.  
      No 4º capítulo d’A Origem, dedicado à seleção natural, Darwin se utiliza da única ilustração presente em todo o livro, um diagrama hipotético semelhante à imagem da árvore supracitada (figura 1)27. O eixo vertical do diagrama representa a dimensão temporal (I, II, III etc.) e a distância entre as letras no eixo horizontal reflete a diferença de parentesco evolutivo (divergência filogenética) entre as espécies. Dito isso, pode-se constatar que há quinze novas espécies no topo do diagrama (tempo atual) que descenderam por modificação a partir de algumas das onze espécies ancestrais presentes na base (representadas pelas letras A-L), não deixando de se notar também os muitos “ramos” intermediários entre os dois extremos:  


Figura 1: Diagrama em forma de árvore presente n’A Origem das Espécies (DARWIN, 2006, P. 525). 

      Antes de prosseguir, é importante ratificar que Darwin propôs uma teoria gradualista (mudança contínua e gradual das populações), e isso significa que o estado atual de um organismo ou de um órgão foi alcançado através de inúmeras gradações intermediárias – Natura non facit saltum. É justamente por defender esse gradualismo que Darwin (2006, p. 571) admitiu explicitamente que a sua teoria sucumbiria caso se demonstrasse que certo órgão não poderia ser explicado por meio de pequenas e sucessivas mudanças ao longo do tempo. Sucumbiria, pois ele se apressa em afirmar logo em seguida: “Só que nunca consegui encontrar esse órgão” (DARWIN, 2006, p. 571).  
      Não seria o olho um bom exemplo de órgão complexo não passível de ter evoluído gradualmente? Essa foi uma das muitas estruturas[28] analisados por Darwin n’A Origem. Na seção seguinte, abordarei a seleção natural como pano de fundo explicativo para o olho, mostrando que é possível explanar o seu surgimento de modo natural, gradual e não intencional.  

4. Olho: Desenho sem Desígnio

      Eis aonde chegamos: é possível, a partir do que foi exposto, explicar uma mesma estrutura – o olho – de dois modos incompatíveis. O primeiro (seção 2) afirma que a complexidade estrutural e a intrincada conexão entre as partes desse órgão são suficientes para atestar que ele tenha sido planejado e fabricado, de uma só vez, por um Ser sobrenatural inteligente, poderoso e bom: o Deus pessoal da concepção cristã. Já de acordo com a explicação alternativa (seção 3), toda a complexidade e “perfeição” do olho atual podem ser explicadas por um mecanismo material, a seleção natural, que atuou sobre inúmeros estágios intermediários, ou seja, a origem dessa estrutura se deve a um processo gradual e desprovido de finalidade.
       Darwin (2006, pp. 569-71) afirma que pode parecer impossível ou absurdo supor que um órgão capaz de ajustar o foco, de receber quantidades variadas de luz e de corrigir aberrações seja explicado pela seleção natural. Essa impossibilidade, entretanto, é apenas aparente, pois é possível demonstrar que existem numerosas gradações vantajosas entre um olho simples e um complexo. Esse olho complexo resultou da seleção natural atuando sobre a variabilidade biológica, a qual promoveu uma sobrevivência diferencial dos indivíduos e da transmissão hereditária das características vantajosas, que se acumularam por inúmeras gerações. A impossibilidade aparente, portanto, está na suposição de que um órgão moldado por milhões de anos surja em um só passo (DARWIN, 2006, pp. 569-71).
Contra essa suposição, Darwin nos adverte repetidas vezes: Natura non facit saltum29 
      No entanto, alguns críticos defendem que o processo evolutivo é incapaz, mesmo levando-se em consideração o vasto tempo geológico, de moldar um órgão como o olho, haja vista que o acaso não produziria a sua complexidade estrutural: caso fosse possível separar cada um dos muitos componentes desse órgão e, após isso, juntá-los aleatoriamente, constatar-se-ia que seria implausível, em termos práticos, formar um olho funcional. Se esse é o caso, faz mais sentido postular que a origem dessa estrutura biológica escapa à explicação naturalista proposta por Darwin. 
      A falha do raciocínio acima, porém, está em considerar que o conjunto do processo evolutivo se dê ao acaso, e isso é um erro. Biólogos atuais utilizam conceitos como mutação genética para explicar o surgimento de variações[30] aleatórias que ocorrem no interior de uma população de organismos. A imensa maioria dessas mutações é deletéria, mas o que falar das que são vantajosas? Simples, a seleção natural se encarrega de eliminar as primeiras e de preservar as últimas[31], promovendo a sobrevivência não aleatória dos indivíduos e sendo, desse modo, responsável pelo acúmulo das modificações favoráveis na população em questão:  

Cada mudança sucessiva no processo evolutivo gradual foi simples o bastante, relativamente à mudança anterior, para ter acontecido por acaso. Mas a sequência integral dos passos cumulativos não constitui absolutamente um processo aleatório, considerando a complexidade do produto final em comparação com o ponto de partida original (DAWKINS, 2005, p. 73). 
       O resultado desse processo cumulativo é que as transformações pelas quais passam os organismos de uma população tendem a tornar suas estruturas corporais mais úteis[32], em relação às de seus antepassados. Em outras palavras, por eliminar conformações nocivas, esse mecanismo asseguraria que o grau de perfeição encontrado num certo momento supere os estágios precedentes (DARWIN, 2006, p. 578).  
     Isso implica perfeição? Não. Dizer que um olho é “perfeito” significa o mesmo que afirmar (i) que ele é bem adaptado à sua função e (ii) que é mais eficiente em relação aos estágios estruturais anteriores. Até pouco tempo antes da publicação d’A Origem, Darwin advogava a favor de uma adaptação perfeita dos organismos ao ambiente, ou seja, durante essa época ele subordinava as mudanças evolutivas às modificações nas condições ambientais. Entretanto, Darwin mudou de concepção no início de 1857, conjecturando que se não existisse uma adaptação perfeita dos organismos ao ambiente, “haveria uma contínua busca por ajustes, no sentido de conseguir o máximo possível de eficiência no uso de recursos do ambiente” (BIZZO, 2007, p. 360). Por conseguinte, a seleção natural darwiniana, diferentemente do Deus de Paley, é incapaz de assegurar uma adaptação ambiental plena dos seres vivos, e a estrutura corpórea desses é sempre, pelo contrário, imperfeita (BROOKE, 2003, p. 198) – Deus projeta o ideal, a seleção natural molda o possível.  
        No que se refere especificamente ao olho humano, isso é suportado pela falta de perfeição desse órgão (DAWKINS, 2005, p. 143): ele forma uma imagem invertida, possui um ponto cego, deteriora-se com o passar do tempo e, para infelicidade de certas pessoas, alguns vêm com defeito de fábrica! Por que características nitidamente desvantajosas do ponto de vista de um simples engenheiro humano seriam levadas a cabo por um Deus sumamente inteligente, bondoso e poderoso? Essas imperfeições são explicadas satisfatoriamente, e até mesmo preditas, pela seleção natural, mas são mutuamente excludentes em relação a um planejamento divino. Sendo assim, Darwin é capaz de  explicar a adaptação “perfeita” do olho à sua função sem evocar, em momento algum, o Deus projetista, inteligente e intencional de Paley, substituindo-O pela seleção natural, um mecanismo cego, sem qualquer tipo de antevisão ou propósito (DAWKINS, 2005, pp. 23- 4). Em resumo, o olho, o imperfeito olho, é um desenho biológico, fruto de um processo natural, e não o resultado do desígnio de um Ser sobrenatural (DARWIN, 2006, p. 580): a ciência prescinde da teologia tanto para explicar o seu surgimento como o seu funcionamento.

5. Considerações Finais  

     De acordo com o que foi visto, concluo que o sucesso da concepção darwinista em explicar naturalisticamente os organismos vivos e as suas estruturas (seções 3 e 4) é suficiente para refutar o argumento do desígnio de Paley[33] (seção 2). Entretanto, o êxito daquela concepção não é o bastante para garantir a inexistência de Deus, inclusive do Deus pessoal invocado pelas religiões monoteístas. E isso se dá basicamente por três motivos:
(i) Não é possível provar ou refutar Deus a partir de dados empíricos[34]. Entre outras coisas, isso significa que por mais racionais que sejam os argumentos a favor e contra a existência de Deus, eles nunca serão definitivos para encerrar a questão: pessoas inteligentes e esclarecidas continuarão a defender pontos de vista diametralmente opostos sobre o assunto.
(ii) A teoria evolutiva não é necessariamente uma concepção ateísta. Mais do que isso, o próprio Darwin[35] não endossava essa concepção: o abandono da visão teísta de sua juventude não significou a defesa do ateísmo, pois, provavelmente, ele adotou uma posição agnóstica no final de sua vida. Cito duas passagens retiradas, respectivamente, de uma carta enviada para Asa Gray (22 de maio de 1860) e de sua autobiografia para ilustrar esse fato: 

Jamais foi a minha intenção escrever como um ateu. (...) Sinto, no mais íntimo de meu ser, que todo esse assunto é profundo demais para o intelecto humano. (...) Sem dúvida, concordo com você que minhas posições não são necessariamente as de um ateu (BURKHARDT, EVANS & PEARN, 2009, pp. 39-40).    
Não tenho a pretensão de lançar luz sobre esses problemas obscuros [relacionados a Deus]. O mistério do início de todas as coisas nos é insolúvel. Devo contentar-me em permanecer agnóstico (DARWIN, 2000, p. 81).   

(iii) Mesmo que fosse possível refutar empiricamente Deus, isso não se daria tendo em vista apenas a biologia evolutiva. A descendência comum e o mecanismo de seleção natural são eficazes para demonstrar que os seres vivos não foram planejados por Deus, mas não o são para provar que o Universo e suas leis não foram projetados por um Ser sobrenatural: os organismos biológicos são uma parcela temporal e espacialmente limitada dos seres materiais do Universo e é necessário, por conseguinte, mais do que uma explanação do domínio biológico para dar conta da totalidade do âmbito físico. 
      Por fim, queria terminar este texto lembrando que o mesmo Darwin que cursou medicina e se tornou um grande naturalista também estudou teologia e pretendia, assim como o fez Paley, seguir uma carreira religiosa. Porém, diferentemente da Teologia Natural escrita por seu conterrâneo, a obra de Darwin não foi recebida de modo amistoso pelos religiosos: “Considerando a fúria com que tenho sido atacado pelos ortodoxos, parece ridículo que um dia eu tenha pretendido ser pastor” (DARWIN, 2000, p. 49). Que feliz ironia! 

 6. Referências Bibliográficas 

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BROOKE, John Hedley. Darwin and Victorian Christianity. In: Jonathan HODGE & Gregory RADICK (Eds.). The Cambridge Companion to Darwin. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. 
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Texto originalmente publicado como o 3º capítulo (pp. 84-108) do livro Filosofia, Religião e Secularização, organizado por Antonio Glaudenir Brasil MAIA & Geovani Paulino OLIVEIRA (Porto Alegre: Editora Fi, 2015). Link para a leitura completa do livrohttp://media.wix.com/ugd/48d206_de70e326d1ea48509ced8df82cecf15e.pdf

[1] Agradeço a André Nascimento Pontes, Professor de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), pelas críticas e sugestões feitas a este texto.  
[2]  Ressalto que a temática sobre Deus é bem antiga e surgiu com a religião muito antes do aparecimento da filosofia (CORETH, 2009, pp. 16-27).
[3] Como observado por Eddy & Knight (2006, pp. ix-x), a divisão dos argumentos para a existência em três categorias (eles não mencionam o argumento kalam) é uma “ferramenta heurística útil”, contanto que não se esqueça de que tais argumentos frequentemente podem ser apresentados juntos, não sendo, portanto, “pacotes fechados”.
[4] O argumento kalam é proveniente de uma escola árabe do início da Idade Média e alguns estudiosos não o mencionam separadamente por o considerarem uma variante do argumento cosmológico (McGRATH, 2005b, pp. 298-300).
[5] A palavra inglesa “design” pode ser traduzida de duas formas nas línguas latinas (português, espanhol e francês): uma possibilidade é “desígnio” e a outra, “desenho”. Enquanto o uso dessa última não acarreta a inferência de qualquer propósito ou intenção, o mesmo não pode ser dito daquela primeira possibilidade de tradução. Portanto, é possível se afirmar que os organismos são desenhos biológicos sem se invocar qualquer desígnio para explicar os mesmos: “(...) a ideia que a seleção natural desenha os organismos sem desígnio algum não tem a aparência imediata de um contrassenso” (CAPONI, 2012, p. 64, grifos do original).
[6] A abordagem de Darwin explana a complexidade biológica em uma dimensão muito mais ampla e não apenas fragmentos da mesma. Utilizo a estrutura do olho como um exemplo ilustrativo do poder explanatório do paradigma darwiniano.
[7] O título completo em inglês é Natural Theology or Evidence of Existence and Attributes of Deity, collected from the appearances of nature.
[8] Ora, caso se leve em consideração que Deus – com todas as características que as três grandes religiões monoteístas Lhe atribuem – tanto decidiu se revelar através das escrituras sagradas quanto projetar-criar o mundo, tem-se a tão famosa metáfora dos dois Livros de Deus, respectivamente, o Livro Revelado e o Livro da Natureza e, consequentemente, duas formas de conhecê-Lo: o 1º “Livro” é objeto de estudo da teologia revelada (conhecimento completo de Deus), enquanto que o 2º “Livro” é estudado pela teologia natural (conhecimento parcial de Deus). Na verdade, a teologia natural não pretende provar a existência de Deus, mas já pressupõe que Ele exista, ou seja, a teologia natural depende da teologia revelada: “A busca de ordem na natureza não pretende demonstrar que Deus existe, mas apenas quer reforçar a plausibilidade de uma crença já existente” (McGRATH, 2005a, p. 170). Ver também Paley (2006, p. 280).
[9] McGrath, por exemplo, lista três (2005a, pp. 171-6) ou quatro (2011, p. 16) concepções abrangentes de teologia natural.
[10] John Ray publicou em 1691 um livro que é um marco dessa época – The Wisdom of God Manifested in the Works of the Creation.
[11] Constata-se claramente que Paley foi influenciado, entre outros, por William Derham, sendo sugestivo comparar os títulos do livro daquele (1802) com o deste (1713) – Physico-Theology: or, A Demonstration of the Being and Attributtes of God from his Works of Creation.
[12] Paradoxalmente, o sucesso da física de Newton, que era um teísta cristão, deu margem para uma interpretação deísta do Universo: sim, o Universo é um grande e complexo relógio, mas a sua manutenção e o seu funcionamento não dependem de um Deus pessoal. Paley foi o responsável por reabilitar e rearticular a metáfora do relógio em prol da existência do Deus cristão (McGRATH, 2005a, p. 129; 2011, p. 91). Vale a pena ressaltar que também é possível se extrair uma interpretação teísta da concepção newtoniana de Universo: as leis da natureza são um indício ou mesmo uma prova de que há um Legislador e este, por seu turno, pode “ser facilmente identificado com a, ou assimilado à, noção cristã de Deus” (McGRATH, 2011, p. 54).
[13]  O Deus defendido por Paley é tanto um Projetista quanto um Fabricador (McGRATH, 2011, p. 94).
[14]  É lugar comum na literatura apresentar o argumento de Paley como sendo uma analogia. A esse respeito, consultar Portugal (2006, p. 317), Eddy & Knight (2006, p. xviii) e Garrett (2008, p. 25), por exemplo.
[15] Sobre a “continuidade física e intelectual entre o jovem Darwin e Paley”, consultar McGrath (2011, pp. 155-7). De acordo com esse autor, a compreensão do pensamento do jovem Darwin só é possível caso se tenha em conta a influência nele exercida pelos escritos de, entre outros, William Paley. A esse respeito, ver também Gould (2002, pp. 116-21) e Olding (2003, pp. 6-10).
[16] “Em momento algum me preocupei com as premissas de Paley; aceitando-as em confiança, fiquei encantado com a longa linha de argumentação e convencido por ela” (DARWIN, 2000, p. 51).
[17]  Pode-se destacar na autobiografia de Darwin (2000) duas passagens que precedem à sua famosa viagem e outra que se refere a esse último período: “(...) como, naquela época, eu não tinha nenhuma dúvida sobre a verdade rigorosa e literal de cada palavra da Bíblia, logo me convenci de que nossa religião devia ser plenamente aceita” (pp. 48-9) / “Era profundamente religioso e tão ortodoxo que, um dia, disse-me que ficaria desolado se uma só palavra dos Trinta e Nove Artigos fosse alterada. Suas qualidades morais eram admiráveis, sob todos os aspectos” (pp. 55-6) / “Eu era ortodoxo na época em que estive a bordo do Beagle. Lembro-me de provocar gargalhadas em vários oficiais (embora eles mesmos fossem ortodoxos) por citar a Bíblia como uma autoridade incontestável numa ou noutra questão de moral” (pp. 73-4).
[18] “Logo que me convenci, no ano de 1837 ou 1838, de que as espécies eram mutáveis, não pude evitar a crença em que o homem devia estar sujeito a essa mesma lei” (DARWIN, 2000, p. 113).
[19] Em geral, não há qualquer dúvida que Darwin descobriu antes e fundamentou melhor do que Wallace o mecanismo por ele denominado de seleção natural. Um ano antes da publicação d’A Origem, foi tornado público a descoberta independente desse mecanismo e, portanto, o mesmo foi atribuído aos dois naturalistas (leitura de um trabalho conjunto na Sociedade Lineana em julho de 1858). Deve-se ressaltar que há quem negue que Wallace propôs um mecanismo evolutivo semelhante à seleção natural em seu artigo original de 1858 (CAPONI, 2009a).
[20] O título original do livro é On the Origin of Species by Means of Natural Selection, or the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life. Seguirei nessa exposição Waters (2003) e Caponi (2009b, especialmente o primeiro e o segundo movimento de sua versão do silogismo darwiniano, pp. 413-4). De acordo com Waters (2003, p. 121), A Origem das Espécies (1ª edição) pode ser dividida em três partes, a saber: (i) apresentação do argumento analógico da seleção artificial e das observações provenientes da história natural (capítulos 1-4), (ii) análise do conjunto de problemas enfrentados pela sua abordagem (capítulos 6-9) e, por fim, (iii) demonstração do poder explicativo de sua concepção científica (capítulos 5, 10-13).
[21]  Para Mayr (2006, pp. 113-32), não é correto referir-se a uma teoria de Darwin: o que existe, na verdade, é um paradigma darwiniano composto por cinco teorias independentes – entre elas, estão a descendência comum e a seleção natural, as quais explicam, respectivamente, a similaridade interespecífica e a adaptação ao ambiente. Segundo Caponi (2011, pp. 705-10), o programa adaptacionista (adaptação dos organismos às exigências ambientais) teve um papel secundário em relação ao programa filogenético (filiação comum na árvore da vida) logo após a publicação d’A Origem das Espécies, já que nesse período a tarefa principal era traçar filogenias e não identificar adaptações.
[22] Darwin redigiu o seu livro numa Inglaterra capitalista e industrial e, entre tantas outras, podem-se destacar aqui as influências de dois economistas britânicos, a saber, Adam Smith e Thomas Malthus. De acordo com o primeiro, o estabelecimento de uma liberdade natural possibilita que um determinado homem livre persiga os seus próprios interesses na competição com os demais indivíduos, desde que ele não infrinja as leis que regem a sociedade. Segundo Malthus, o poder de crescimento da população humana (progressão geométrica) é muito maior que o da produção de alimentos (progressão aritmética), e essa discrepância gera competição, cujo resultado é a fome, a miséria, o vício e a morte de alguns indivíduos.
[23] Darwin (2006) não sabia explicar como surgiam as variações nem possuía uma teoria que fosse capaz de explicar satisfatoriamente a transmissão das características hereditárias (ele defendeu uma teoria chamada pangênese, a qual foi contestada desde o seu tempo e há muito foi descartada). Sendo assim, ele estava consciente de sua limitação sobre as leis que regulam a variação e de que o resultado dessas leis é “infinitamente complexo e diversificado” (p. 456). Além disso, ele não sabia explicar o porquê da herdabilidade de certos traços e não de outros (p. 457).
[24] Darwin foi muito mal compreendido ao falar da semelhança existente entre esses dois processos, e ele tentou desfazer textualmente tal confusão nas edições posteriores d’A Origem (capítulo 4). Quando um pecuarista ou um agricultor manipula o cruzamento de animais e plantas com determinadas características, ele o faz intencionalmente. Portanto, a domesticação de animais e plantas envolve, literalmente, um processo de seleção, ou seja, de escolha consciente. Contudo, como não há qualquer tipo de propósito na sobrevivência diferencial dos organismos na natureza, apenas metaforicamente é que se pode utilizar o termo seleção.
[25] Note, em primeiro lugar, que há aqui simultaneamente dois aspectos envolvidos, a saber: a seleção dos lobos mais rápidos e a eliminação dos mais lentos. Em segundo lugar, observe que o sucesso de sobrevida dos indivíduos selecionados não implica que eles obterão, necessariamente, o mesmo êxito reprodutivo. Com isso, pode-se afirmar juntamente com Mayr (2006, p. 151) que a seleção natural é constituída por dois fenômenos diversos: “a seleção natural propriamente dita (seleção de sobrevivência) e a produção diferencial de prole devida à variação na capacidade de lidar com fatores ambientais que não sejam parceiros e seleção sexuais (seleção por sucesso reprodutivo) – especificamente, sucesso na competição por parceiros.”
[26]  Duas questões que estavam claramente separadas para Darwin são, muitas vezes, confundidas pelos adeptos do criacionismo. Um primeiro problema é saber como se originou a vida e o outro, – relacionado ao primeiro, mas distinto dele – é explicar como, após o surgimento da vida, surgem novas formas orgânicas. O processo de diversificação biológica (2ª questão) foi explicado por Darwin através da atuação da seleção natural em uma ou algumas poucas espécies iniciais: “(...) esse processo de divergência poderia ter seu ponto de partida em um conjunto muito reduzido de formas primitivas ou, inclusive, em uma única forma; forma essa cuja origem, claro, a própria teoria da seleção natural não poderia explicar. Ela é uma teoria sobre a origem das espécies e não sobre a origem da vida” (CAPONI, 2009b, p. 412).
[27] Para ser mais exato, o diagrama da figura 1 representa apenas um corte abstrato ou ampliação de uma pequena região da árvore da vida.
[28] Como dito anteriormente, Paley influenciou bastante Darwin. Essa influência pode ser detectada no estilo argumentativo, na escolha das palavras e, até mesmo, nos exemplos utilizados (talvez inconscientemente) por Darwin. Cito apenas dois dos paralelos apontados por Gould (2002, pp. 118-21): (i) Ambos se baseiam na comparação e na extrapolação do artificial para o natural, defendendo, além disso, que o mecanismo que atua na natureza (desígnio divino e seleção natural) é mais potente que o artificial (desígnio humano e seleção artificial), e (ii) tanto Paley como Darwin se utilizam de exemplos semelhantes nas suas argumentações: ambos analisam o olho e o comparam com o telescópio, para ficar somente em um exemplo (PALEY, 2006, p. 16; DARWIN, 2006, p. 570).
[29] Dawkins (1998, especialmente o capítulo 3) propõe a parábola do monte Improvável para explicar esse ponto. Imagine que no cume dessa elevadíssima montanha hipotética se encontrem seres e estruturas biológicas complexas, como é o caso do olho. Além de alto, o monte é bastante íngreme, o que desencoraja qualquer alpinista sensato. Todavia, caso se observe mais atentamente, ver-se-á um declive gradual por trás da encosta íngreme citada anteriormente. Existem duas alternativas básicas caso se queira atingir o ápice do monte Improvável: um salto único da base para o topo, que seria o equivalente de projetar e fabricar o olho de maneira instantânea (Paley), ou por meio de uma escalada lenta, contínua e gradual, o que representaria o processo evolutivo (Darwin). Este é, para Dawkins (1998, p. 219), o único meio plausível, e a “seleção natural é a pressão que impulsiona a evolução rumo ao topo do monte Improvável.”
[30] A ausência de uma explicação genética adequada para as variações foi a responsável por uma série de questionamentos justificáveis ao arcabouço teórico proposto pelo naturalista inglês: “Em todos os seus brilhantes devaneios, Darwin não chegou a descobrir o conceito básico sem o qual a teoria da evolução é inútil: o conceito de gene. Darwin não tinha uma unidade adequada de hereditariedade, e a descrição que fez do processo de seleção natural, portanto, estava infestada de dúvidas totalmente razoáveis quanto à sua possibilidade de funcionar” (DENNETT, 1998, p. 20).
[31]  Como mencionado, de acordo com Darwin (2006, p. 574), a seleção natural atua preservando a vida dos indivíduos mais aptos e destruindo aqueles que possuem traços desfavoráveis. Além disso, vale a pena mencionar que a seleção natural não é capaz de produzir uma estrutura que seja exclusivamente benéfica ou maléfica aos indivíduos de outra espécie. Caso se observe uma estrutura desse tipo na natureza, é porque ela é vantajosa, antes de tudo, à espécie que a possui (DARWIN, 2006, pp. 580-1). Uma breve análise de parasitas e animais polinizadores, por exemplo, é suficiente para atestar esse ponto.
[32] Paley também defende que a estrutura biológica é útil ao organismo, porém essa utilidade é assegurada pelas características da personalidade divina, tais como a inteligência, a benevolência e a onipotência – Deus sabe como, quer e pode projetar um organismo que funcione bem – e assim Ele o fez repetidas vezes, como testemunham as Suas “obras da natureza”. Dessa maneira, os organismos não apenas foram projetados pelo Criador, mas, deve-se acrescentar, foram projetados a partir de “propósitos benéficos” (PALEY, 2006, p. 243; McGRATH, 2011, p. 96).
[33]  Hume, ou melhor, Philo (ou Fílon), já havia lançado fortes críticas ao argumento do desígnio antes mesmo de Paley ter elaborado a sua própria versão desse argumento (HUME, 2012, pp. 96-109). Alguns exemplos são: (i) mesmo que o mundo tenha sido criado por um Ser sobrenatural, isso não é o suficiente para assegurar que esse seja o Deus pessoal cristão que Paley tinha em mente; (ii) os argumentos de Paley são perfeitamente compatíveis com a existência de vários Projetistas; e, por fim, (iii) a observação atenta de nosso mundo é o bastante para mostrar que ele é defeituoso e imperfeito.
[34] Discordo, portanto, que “‘A Hipótese de que Deus Existe” é uma hipótese científica sobre o universo” (DAWKINS, 2007, p. 24). A despeito de Dennett se alinhar em muitos pontos à posição de Dawkins, ele está ciente de que ter sucesso em atacar um argumento para a existência de Deus não comprova Sua inexistência (DENNETT, 2007, p. 139). E isso se aplica à perspectiva darwiniana: ela não prova a inexistência divina, mas apenas nos mostra que “não temos nenhuma boa razão para pensar que Deus existe” (DENNETT, 2007, p. 147). Nesse quesito, penso que a posição de Dennett é mais sensata.
[35] Para Dawkins (2007), o correto entendimento da ciência, no geral, e da biologia evolutiva, em particular, leva necessariamente ao ateísmo. Ele sustenta que antes da concepção darwinista o “ateísmo até poderia ser logicamente sustentável, mas que só depois de Darwin é possível ser um ateu intelectualmente satisfeito” (DAWKINS, 2005, p. 25). Poder-se-ia perguntar o seguinte para Dawkins: a insatisfação intelectual de Darwin com uma visão ateia significa que ele não compreendeu corretamente a sua própria teoria?

*As informações e ideias contidas neste artigo são de total responsabilidade do seu autor. 

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