Autor: Nailton Fernandes da Silva
Contato: arcanjo-nay@hotmail.com
“A arte ama o acaso, e o acaso ama a arte.” (Agatão, tragediógrafo grego)
A início é importante salientar que a arte enquanto saber produtivo, “não se
ocupa com aquilo que se gera por necessidade” (E.N. 1140a15), como é o caso do saber
cientifico que estuda causas universais e necessárias, isto é, o que se sucede na natureza
(physis) é gerado intrinsecamente à coisa, como diz Aristóteles, por exemplo: “o homem
gera o homem” (MET. 1070a5), expressando assim, necessidade, não podendo ser
diferente, caso contrário, ter-se-ia um acidente, que naturalmente é explicado como uma
exceção ou “anomalia” da substancia da coisa na natureza, assim explica-se por
exemplo, os casos de má formação genética na Grécia antiga.
Deixando um pouco de lado a problemática dos acidentes naturais, por ser
deveras embaraçoso e foge nossa temática, é mister perceber que a natureza não é eterna
no sentido forte da palavra, assim como “os princípios últimos” (MET. 1069b35-36),
isto é, a matéria e a forma “não se geram”, se quiséssemos expressar essa diferença
metafísica entre não geração e eternidade, em linguagem moderna, diríamos que a
matéria e a forma se perpetuam na physis.
Essa “não geração” afirmada pelo Filósofo dá-lhe o caráter ingênito ou inato que
compete a forma e a matéria enquanto um todo (sinolo), pois, o aglomerado de matéria
e forma estão naturalmente em devir, e “tudo o que muda é algo, muda por obra de algo
e muda em algo.” (MET. 1069b36-37) A mudança natural, segundo o estagirita, é
explicada pela existência do “motor próximo”, que é causa de movimento do movido
(MET. 1070a), no caso, a causa última de movimento da physis é o primeiro motor
imóvel, lembrando que, esse motor difere-se abismalmente de Deus, essa palavra
carregada de qualidades metafísica, como a de criação e benevolência.
Em contrapartida, na obra de arte a sua forma ou essência é imaterial, pois, a arte
é a própria forma concebida pelo artífice ainda na ausência de matéria, por exemplo, a
forma da casa concreta é a arte de construir que lhe é inerente enquanto “casa”, mas é
imaterial enquanto forma extrínseca, isto é, produto do artífice que a produz.
Assim, a arte (tekné) é uma capacidade de gerar a “forma”, que segundo
Aristóteles, envolve um “reto raciocínio e uma capacidade de produzir” (E.N. 1140a10),
a saber, proveniente da parte calculativa da alma humana. Entretanto, a arte enquanto
produção (poiésis) deve necessariamente está ligada ao conhecimento de causas
universais, a rigor, intimamente ligado ao “logos verdadeiro” ou reto raciocínio, que por sua vez possibilita um acerto nas coisas que se sucedem diferentemente, isto é,
contingentes.
Sendo a arte à forma, o artista utiliza a matéria amorfa, e usa a técnica para dá a
forma que, segundo Aristóteles, “está presente no pensamento do artífice” (MET.
1032a32), para então produzir a obra, que tornar-se um aglomerado de matéria e forma
concretizada.
Por isso, o estagirita afirma em sua Metafísica, acerca da geração da forma das
coisas, como sendo a “arte principio de geração extrínseco à coisa gerada; ” (MET.
1070a5) Que ilustramos com um exemplo neste caso, perceberíamos que a causa
eficiente ou motora de se produzir o retrato na pedra foi Policleto, que utilizou-se do
reto raciocínio ou logos verdadeiro para tal produção, logo, o principio de geração é
extrínseco, pois a pedra amorfa nunca produziria “naturalmente” um retrato em si, com
tal perícia como o retratista em pedra faria, não havendo assim a famosa “necessidade
intrínseca” de se gerar uma estátua na natureza.
Insistindo no fato de encontrarmos uma estátua na natureza, ou algo que
“pareça” ser produto de uma produção artística, a explicação desta casualidade, seria
novamente um acidente, pois não é necessário ou natural na physis a “produção” de
estatuas, essa tarefa racional e produtiva destinou-se para um artífice ou artista.
Ademais, ainda se referindo à geração das coisas, diz Aristóteles que, a geração faz-se
também casualmente (tyché), isto é, quando ocorre a “privação” da arte. (Idem)
A casualidade ocorre quando por acidente o excepcional se sucede, ou como
Enrico Berti aborda, se sucede um “desvio ou ausência” (BERTI, Enrico. 1998. p. 158),
neste caso estritamente a atividade humana.
A arte (tekné) e o acaso (tyché) diferem-se, sobretudo, pela racionalidade, pois é
a privação do logos que faz gerar as coisas “fortuitamente”, em contrapartida não
confundindo com “carência de arte”, que segundo o estagirita, é a disposição produtiva
acompanhada da falsa racionalidade (E.N. 1140a22).
Tendo em vista que os acidentes, ou o que se sucede por acaso (tyché), segundo
o filósofo, é de natureza indeterminada, ocorrendo posteriores as causas que são “por si”
determinadas (Ver, FÍSICA. 198a7-10), é perceptível que não se possa fazer ciência
aristotélica do que é casual, pois suas causas não podem ser aprendidas. Vejamos o
exemplo do que sucede casualmente (tyché) à partir da ausência da racionalidade
(logos) artística: Policleto o retratista em pedra, não pôde calcular o que se sucedeu com
sua escultura após ter exposto em uma praça pública (causa final), incalculáveis coisas
lhe poderia suceder, sobrepujando as causas “particulares” à sua produção. Alguém não
se agradando da escultura deceparia a cabeça, alterando assim a forma; Ou, ao passar do
“tempo” a estátua mesmo sem cabeça e com a “cor alterada”, torna-se um ponto de
referência para muitos e mais bela respectivamente. A contingência inerente ao que se
sucede casualmente é explicada pelo fato de que, para Aristóteles, o acidental esta mais
“próximo ao não-ser” (MET. VI 2, 1026b20), ademais, a arte enquanto conhecimento universal dotado de logos, que por experiência aplica-se ao contingente (MET. I 1,
981a15), se opõe ao casual por ser necessariamente uma espécie de “saber e entender”,
logo, conhece os porquês ou causas, ou seja, a arte, para Aristóteles, também é uma
espécie de ciência, a saber, produtiva.
Aristóteles deixa pouco esclarecido em sua Ética a Nicômaco que, “em certo
sentido, o acaso e a arte versam sobre as mesmas coisas” (E.N. 1140a15), embora nos
deixe explicito em sua filosofia primeira (Metafísica) a referência de que tanto a arte
(tekné) e o acaso (tyché), participam de certa maneira da geração, assim, a primeira dá
forma de acordo com o raciocínio do artista, e a segunda de acordo com a “privação” da
racionalidade que é própria da arte, no sentido de que o artista não pode calcular o que
ocorrerá após a finalidade de sua produção, e sobretudo, por ambas ocuparem-se das
coisas que podem ser diferentemente ou contingentes.
O fato de a escultura ter se tornado ponto de referência e de contemplação para
alguns, são contingências que poderiam tanto ser como não ser, e que sobrepujará a
racionalidade do artista, portanto, tal fato ocorreu senão por sorte, pois a estatua situa-se
no devir do mundo como todas as outras coisas. A extensão do exemplo foi
propositalmente feita para atentarmos para o fato de que Aristóteles ao citar Agatão
(Tragediógrafo grego) que diz que: “O acaso ama a arte, e a arte ama o acaso” (E.N.VI
4, 1140a20), é a fim de evidenciar a harmonia que há, mesmo quando a privação da
racionalidade artística acontece, gerando algo indeterminadamente, pois a obra de arte
além da finalidade de quem produz, não há um fim absoluto e irrestrito como ocorre nas
ações práticas, isto é, não pode o artista intervir racionalmente de “maneira absoluta”
sobre a arte, tendo em vista que estritamente sua causa final foi expor em praça pública,
logo, as demais causas (para o artífice) que se sucedeu sobre a arte serão acidentais, nos
cabendo insistir que, embora a racionalidade do artífice tenha sido extrapolada após o
findar de sua finalidade, se sucedendo acidentes, nada é explicado por via de acidentes,
o que há, mesmo que de maneira subjacente, é a não racionalização absoluta do objeto
artístico.
Assim, a obra posteriormente, sofre a ação (paixão) do devir ou de alguém que
tem outras e outras finalidades sobre a arte, constata-se assim que, toda produção é
produção sobre um solo em devir, ou no mundo sublunar que está disposto a contrários
e ao acaso.
Enfim, o que surge de maneira indeterminada, por acaso, se opõe ao que
naturalmente ou produtivamente está disposta a ser, não podendo inferir, portanto, que a
obra de arte (sínolo) surgiu por acaso, pois o que ocorre “por acidente” sempre é
posterior ao que é “por si” causal, caso contrário a cosmologia aristotélica da
causalidade não faria sentido.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Metafísica. Org. Giovanni Reale. Trad. Marcelo Perine. São Paulo:
Loyola, 2013.
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
(Coleção Os Pensadores.)
ARISTÓTELES. Física. Traducción y notas: Guillermo R. de Echandía. Editorial
Gredos, S.A. 1995.
BERTI, Enrico. As razões de Aristóteles. Coleção: Leituras Filosóficas. Ed. 2. São
Paulo: Loyola, 1998.
*As ideias e informações publicadas neste artigo são de total responsabilidade do seu autor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário